O camelô-filosfo

por Luís César Ebraico

Eu estava atravessando a Praça Quinze, no Rio de Janeiro, quando ouvi um sujeito – vou chamá-lo de Mário – falando com um camelô sobre algo que fizeram com ele, Mário, e que o deixara indignado. Nunca me esqueci da resposta do ambulante (que, aliás, não parecia ter sido o autor do agravo):

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SUJEITO: – Blá, blá, blá, blá, blá, blá… porque isso NÃO É DIREITO!
AMBULANTE: – Amigo, se anzol não fosse torto, não pegava peixe!

Gosto de demarcar – tão arbitrariamente quanto são demarcados outros períodos históricos – o período de exatos duzentos anos que medeia entre 1789 – a Queda da Bastilha, início "oficial" da Revolução Francesa – e 1989 – a Queda do Muro (de Berlim), fim "oficial" da Guerra Fria – como o período em que ocorreu a maior revolução antropológico-cultural da história da humanidade.

A causa dessa revolução é simples. Nossa espécie, o homo sapiens, povoa este planeta há pelo menos 100 mil anos. Até 1789 a expectativa média de vida do ser humano era de cerca de 35 anos e a população mundial de cerca de 1 bilhão de pessoas, em 1989 essa expectativa havia duplicado, chegando aos 70, e a população mundial sextuplicado, chegando aos 6 bilhões! Esses dados demonstram que, durante o período assinalado – que me apraz chamar de "Os Grandes Duzentos" – a AMEAÇA CONCRETA (não a AMEAÇA POTENCIAL) à nossa vida sobre a Terra, tanto no que diz respeito ao indivíduo, quanto no que diz respeito à espécie, caiu vertiginosamente.

Ora, se levarmos em conta que AMEAÇAS CONCRETAS são o fator mais fortemente relacionado com a ELEVAÇÃO DO MEDO, somos levados a concluir que, durante esse período também deve ter ocorrido uma DRÁSTICA REDUÇÃO DO MEDO, tanto em nível individual, quanto em nível coletivo, e há dados que apóiam tal conclusão, quais sejam: as sociedades anteriores aos Grandes Duzentos – e todas aquelas que, ainda hoje, apresentam expectativas individuais e coletivas de vida características daquela época – organizam-se de acordo com o que chamei de "modo-sobrevivência": são politicamente centralizadas, aguerridas e, conseqüentemente, dominadas pelo macho, marginalizadoras do fraco, exaltadoras do sacrifício e da obediência; as posteriores àquele período – e que superaram grandemente aquelas expectativas – começaram a organizar-se de acordo com a matriz antropológica a que denominei de "modo-bem-estar": são politicamente descentralizadas, cooperativas, integradoras do feminino e do desvalido, valorizadoras da autonomia e do prazer.

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Um fator de natureza psicológica, contudo, nos mantém imersos em uma verdadeira "pororoca antropológica", em que "modo sobrevivência" e "modo-bem-estar" se digladiam. Esse fator, em Psicanálise, tem o nome de "fixação". Nosso presente mostra que já existem condições concretas de estabelecermos a paz e a harmonia neste planeta, mas a memória do passado pede que nos mantenhamos fixados a um modo de operar afinado com o temor e com a guerra.

E para quem se sente em guerra, os outros não são semelhantes com quem colaborar, mas peixes a pescar, exigindo o emprego de anzóis, que, para funcionar, devem ser tortos.

Grande parte das chances de sucesso da humanidade depende de que ela aprenda, com a Psicanálise, a desmanchar suas fixações. Isso depende de um determinado uso da palavra, do desenvolvimento de uma Nova Conversa, cuja natureza me venho dedicando a divulgar.

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