Cuidado com as obras de arte com as quais convive

por Roberto Goldkorn

Quando um artista, seja ele um Pablo Picasso ou um Mestre Vitalino, dá à luz a uma obra de arte (não está em julgamento a qualidade ou valor pecuniário da peça), imprimiu nela a sua marca pessoal, e "carregou-a" de significado.

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Diferente do que acontece com um marceneiro ao produzir uma mesa, ou de um serralheiro ao produzir um portão, por mais que possamos dizer extasiados diante dessa mesa ou desse portão: "É uma verdadeira obra de arte! ", mesas e portões são objetos com funções.

O que distingue a arte de outros objetos, é justamente o fato dela não ter função, a não ser estética.

Abrigar-se da chuva usando uma tela impressionista, ou bater na cabeça de alguém com uma estátua neoclássica de bronze, não tornam esses objetos funcionais – sua única função é nos proporcionar aquilo que se chama de fruição estética.

Para muitas pessoas arte representa investimento, outros a veem apenas como símbolos de status, ainda há os que acreditam no seu poder ideológico. Não importa a função da arte, sua essência, primordialmente, é enriquecer a alma humana de significado.

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Assim, ao colocarmos qualquer peça de arte nos ambientes que nos cercam (e aqui estou incluindo também, a música, a arte das imagens em movimento), estamos trazendo para dentro de nossas vidas quatro níveis de estímulos que podem afetar de modo significativo o nosso psiquismo, nosso comportamento e até a nossa saúde e das pessoas que ali estão.

Primeiro nível de estímulos

O primeiro nível de estímulos vem da energia/intenção que o artista colocou na sua obra. Mesmo numa tela abstrata há uma intenção, um pré-significado, por mais obscuro ou delirante que nos possa parecer. Nem sempre a energia que vai ser a mais importante é a da intenção consciente do artista, mas ela está lá, pulsando.

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A apreciação ou a produção de arte é função majoritária do hemisfério cerebral direito (ligado de forma mais poderosa ao Inconsciente), o estado de espírito do artista, suas emoções, seus idealismos ou suas taras, podem passar total ou parcialmente para a obra de arte. Existem estudiosos que afirmam ser, a expressão artística, um meio através do qual energias espirituais inteligentes permanecer na "ativa". Isso gera um circuito, que pode estar claramente visível ou "dissolvido" no conjunto da obra e, portanto, oculto à simples visão leiga.

Um artista com uma poderosa energia sexual, enjaulada por uma educação religiosa e fortemente restritiva, pode produzir uma obra amargurada, dilacerada, cheia de marcas de culpa, de autoflagelação, onde os sinais da sexualidade estejam mutilados pela autocensura moralizante. Sem a menor sombra de dúvida, isso vai afetar o possuidor de tal obra. Afinal, todos nós temos um pouco ou muito desse conflito. Obras de arte de teor religioso, ou antirreligioso, que são resultado do fervor do artista, emanam essa energia e contagiam tudo à nossa volta. Os resultados disso, irão depender das nossas afinidades, filtros e censores internos.

Segundo nível de estímulos

O segundo nível de estímulos vem do que chamamos estilo de época.

Dificilmente algum artista escapa das disposições estéticas e ideológicas da época em que criou a sua obra. Não se tem notícia de um pintor do Barroco, pintando telas cubistas, se isso acontecesse, ele seria internado e suas telas destruídas com fúria, (nós somos assim, destruímos e renegamos aquilo que não se encaixa ou não compreendemos).

Já que falamos do Barroco, esse é um estilo que marcou profundamente todas as gerações que vieram depois. O conceito clássico do Barroco é o amargurado conflito entre a religiosidade da Idade Média, e o mundanismo, deslumbrado do Renascimento. Isso produziu uma arte rebuscada, cheia de firulas e manobras preciosistas, como se os artistas quisessem dizer: "Olhe, continuo temente a Deus, e fiel à Santa Madre Igreja, mas tenho uma visão de mundo mais ampla, descobri o Novo Mundo, estou cheio do ouro e da prata das Américas, atravessei o Oceano Atlântico, sobrevivi aos monstros e vi as índias com as suas "vergonhas de fora", por isso não sou mais o mesmo, preciso mostrar os meus sucessos, o meu Ego está lá em cima, mas continuo temente a Deus, e fiel à Santa Madre Igreja…"

Disso resultou uma arte que até hoje habita as igrejas e muitas residências, com seus santos, anjos e Cristos amargurados, com seus mantos ricos, transbordando de drapeados e pregas. Na música um belo exemplo desse desenvolvimento é J. S. Bach em seu Jesus Alegria dos Homens com a sua estrutura espiralada, e repetitiva, que ainda encanta o que restou de sensibilidade nas pessoas.

No Brasil, falar de Barroco é ter como referência imediata o Aleijadinho cuja arte alguns críticos chamam de "quase patológica", de tão sofridas e contorcidas que são suas estátuas (Aleijadinho tinha esse cognome por causa dos estragos que a lepra, hoje chamada de Hanseníase, fez em seu corpo).

Por essa e por outras razões ter imagens de santos barrocos em casa, ou em consultórios, é trazer para junto de nós a angústia e a perplexidade do estilo (de época) barroco de ser.

Em minha opinião essa estética irradia o seu conceito original pela casa ou ambiente profissional, podendo contaminar aos que ali moram ou trabalham com sua angustiada indefinição.

Terceiro nível de estímulos

O terceiro pacote de estímulos vem com a "leitura" pessoal de cada obra de arte. Independentemente do que o autor quis ou não quis dizer, independente do que fosse o padrão do estilo da época em que foi criada ou inspirada, o impacto da obra no indivíduo vai variar imensamente uma vez que dependerá das identificações desses indivíduo com o "espírito" dessa obra de arte.

Uma antiga professora de literatura me ensinou, que uma vez saída das mãos do seu criador, a obra de arte está livre – a visão do autor tem tanto valor quanto a interpretação de qualquer um de nós. "Quem ama o feio, bonito lhe parece", essa frase, serve de chave para entendermos a questão da percepção pessoal da obra de arte.

A mesma tela toda branca pode evocar para uma pessoa a pureza, a virgem imaculada, a paz, ou para outra um asfixiante vazio, um deserto de neve onde nada floresce, ausência de vida. Um sujeito que tem fobia de aranha, pode identificar num traçado abstrato a imagem de uma aranha (que só ele vê), e talvez nem perceber isso conscientemente, mas por "alguma razão" aquela obra vai incomodá-lo sistematicamente.

A arte cutuca diretamente o nosso universo mítico, provoca associações em diversos níveis de consciência, e traz à tona experiências pessoais, que por esse aspecto são únicas, mas também incita experiências coletivas, naquele território que Jung chamou de Inconsciente Coletivo, e é isso que nos permite apreciações ou rejeições mais ou menos "consensuais" das quais falaremos em seguida.

Assim ao avaliar o circuito das artes de um ambiente, lembre-se de pedir a opinião de todos os que ali habitam ou trabalham, como se sentem em relação às obras. Igualmente importante é a sua localização (às vezes um quadro da "Santa Ceia", não fica bem no banheiro, mas fica contextualizada sobre a mesa da cozinha onde se faz as refeições do dia a dia). Uma escultura muito sensual no quarto de um casal de idosos, talvez deixe um quê de desassossego no ar, mas no quarto de um pré-adolescente pode criar uma excitação que no fim vai dar no mesmo desassossego.

Um menino que adorava cercar-se de imagens marinas em seu quarto, tentou suicidar-se na piscina da casa. Uma investigação mais apurada, mostrou que na vida passada ele havia se afogado, intencionalmente. Assim, imagens de mar, e fundo do mar, que são no geral muito positivas, porque nos remetem a Origem, à Mãe, e a paz, imensidão etc, para esse indivíduo em particular, realimentava seus programas mórbidos de vida passada.

Quarto nível de estímulos

A quarta e última fonte de estímulos provenientes de objetos de arte, vem, da visão "universal". Independente, do que o artista quis significar, do estilo da época em que foi gerada, do que o feliz proprietário sente ou não sente diante da obra, existe uma quase lógica, um consenso (opinião majoritária), baseado na própria experiência coletiva, nos valores universais/culturais e no bom senso.

Um exemplo recente. Estava fazendo uma avaliação no escritório de um poderoso empresário, e vi sobre a sua cabeça (na parede atrás da sua mesa), um brasão com o escudo e três espadas, desses que se vendem em lojas de estrada.

Ele se queixava de fortes dores no peito "como se estivessem enfiando uma faca". Perguntei-lhe há quanto tempo as espadas estavam lá pendendo sobre a sua cabeça. Ele achou engraçada minha pergunta, pois começou a sentir as dores algum tempo depois de colocá-las naquela parede.

"Antes", ele comentou, "na outra sala, da antiga empresa, elas ficavam na parede à minha frente. "Quando voltei no dia seguinte, as espadas já haviam se mudado, para outra parede longe da cabeça do poderoso chefão. "Elementar meu caro Roberto", poderiam dizer alguns de vocês, "espadas sobre a cabeça, são uma configuração arquetípica antiga e facilmente reconhecível", concordo, mas gostaria de lembrar-lhes, o velho ditado: "Quem ama o feio, bonito lhe parece".

O conceito de (uma imagem) feio, negativo, ou bonitoé, antes de mais nada, cultural; e o indivíduo pode vê-la como bonita, positiva, ou afetiva. Isso se dá através de um filtro composto por suas experiências pessoais sensoriais, culturais, religiosas, mas principalmente e acima de tudo, emocionais.

No caso do empresário citado, o que estava em cena é o que se chama em jargão psicológico, comportamento supersticioso. É comum fazerem-se associações da obra de arte às coisas boas que lhes aconteceram, mas não podemos esquecer a energia da forma, que cada objeto emana.

Naturalmente, há casos em que a percepção subjetiva vai contra o consenso, essa visão "universal" da obra de arte. Isso pode ser um sinal de genialidade do discordante ou então de alguma patologia psicológica.

Mas para quem pensa que se esgotaram as faces dessa questão, aí vai mais uma – o contexto!

Existe um contexto amplo, obras de arte que retratam miséria, pobreza, tristeza, loucura, violência, mutilação, solidão, conflitos, e que não são aconselháveis em nenhuma circunstância, a não ser que por alguma razão muito pessoal, se queira reforçar aquelas características citadas.

Por exemplo, uma estatueta retratando uma luta de sumô, em uma academia de artes marciais, ou na casa de um lutador. Ou o quadro do vampiro, já citado acima, na casa de um vampiro (num banco de sangue nem pensar!).

Mas existem contextos mais específicos que enfatizam a necessidade ou a evitação vigorosa de determinadas obras de arte. Por exemplo, já pude encontrar esculturas de mulheres sem a cabeça, em clínicas odontológicas ou de cirurgia plástica, ou quadros de mulheres sem braços (tipo Vênus de Milo) em clínicas de ortopedia.

No salão nobre de um banco vi quadros que retratavam barracos numa favela, e num restaurante luxuoso, telas retratando natureza morta (a própria designação já diz tudo). Isso cria um conflito de funções, um antagonismo temático, que em nada contribui para o sucesso da atividade que ali se realiza.

Isso não quer dizer que haja uma obrigatoriedade de se realçar ou sublinhar o contexto de determinado local ou atividade, mas certamente não é bom quando expomos uma arte que expresse conteúdo ou formas que vão contra a essência do negócio (ou dos objetivos) que se desenvolve no local.

Em Portugal, fui diagnosticar um restaurante, cujos proprietários, se queixavam de estar a cada dia perdendo mais e mais clientes. Uma das coisas que vi de imediato, foram os quadros nas paredes, todos, ilustrando paisagens desoladas, silhuetas de pessoas solitárias abandonadas em ambientes sombrios e tristes. O "espírito" de um restaurante, é essencialmente gregário, um lugar para que as pessoas se juntem em torno de uma mesa, para restaurar suas energias, comemorar, celebrar. Ou seja, a decoração nas paredes estava mandando uma mensagem pictórica que contrariava o real espírito da "coisa".

Quando se trata de uma residência, a arte deve sempre estar atrelada e, se possível reforçar, os objetivos de vida das pessoas que ali habitam.

É importante ressaltar como as imagens "artísticas" trafegam até os circuitos cerebrais e lá fazem efeito. Ao passar em frente das obras de artes diariamente as pessoas deixam de olhá-las intencionalmente, mas não de vê-las. Sua retina (ou seu ouvido) capta as imagens que não são "conscientizadas", ou seja, não são percebidas, pois não atingem o nível cortical onde se dá a "tomada de consciência". Assim, ficam abaixo do limiar da percepção ou no nível subliminar. Ali ficam numa espécie de "limbo" cognitivo. Não estão ativadas, não estão conscientes, mas atuam agregando-se a outros conteúdos inconscientes. Fatalmente irão provocar as emoções, sentimentos, sensações, medos, agressividade, excitação erótica etc. Costumo comparar essa mecânica com a de vacinas, onde um vírus, ou agente patológico é inoculado no organismo do indivíduo, mas está inerte, "morto". Os anticorpos porém não sabem disse e correm para atacá-los e ficam "vacinados" contra esse vírus para sempre.

Uma cliente, constantemente deprimida e prisioneira dos seus medos e da solidão, só ouve música instrumental bem deprê, aquelas com violinos lânguidos, e pianos soturnos. Nesse caso a obra de arte musical é consequência de um determinado estado de espírito, e ao mesmo tempo seu reforçador, criando um círculo vicioso, na exata acepção do termo.

O nó dessa questão é exatamente este: as obras de arte com as quais convivemos cotidianamente, de um calendário barato, a uma escultura de dez mil dólares, vão destilar seus significados em qualquer dos quatro níveis sem nos darmos conta disso.

Cuidado com as "obras de arte" com as quais convive, elas podem ser (a expressão de) seus demônios, ou ser (a expressão de) seus anjos.