O mito do livre-arbítrio

por Roberto Goldkorn

Sempre que falava em meus workshops e palestras sobre a ilusão do livre-arbítrio aparecia alguém revoltado para replicar.

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Em geral a base para essas réplicas e tréplicas, era o “livro sagrado” ou alguma outra argumentação baseada em pressupostos religiosos.

Eu não tinha muito a oferecer a favor do meu argumento senão a observação atenta da natureza humana, algumas pinceladas de psicanálise (repetia a frase supostamente atribuída a Freud: “Habitamos numa casa, da qual não somos dono”), e meu conhecimento e prática em “ciências alternativas”.

Compreendo que os muitos séculos de imersão na cultura religiosa judaico-cristã tenham deixado marcas profundas em muitos de nós, mesmo naqueles que não se consideram religiosos. Compreendo igualmente que a crença no livre-arbítrio tem a sua utilidade para arrastar o homem até as suas responsabilidades, principalmente quando erra e precisa ser punido.

Usar argumentos da moderna neurociência para inocentar assassinos brutais, não é nada promissor.

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Mas aceitar esses argumentos (e não os meus) para ter um melhor entendimento dos porquês, das contradições fundamentais e absurdos incompreensíveis de nossos semelhantes pode ajudar a nos libertar de fantasias escravizantes.

O neurocientista Benjamin Libet da Universidade da Califórnia (falecido em 2007) foi um dos pioneiros na pesquisa sobre a fisiologia dos “estímulos-respostas”. Ele queria medir a relação entre o recebimento de um estímulo pelo nosso cérebro e a nossa resposta somática, ou seja a nossa ação. Em resumo ele e seus colaboradores concluíram que a imensa maioria das nossas ações são geradas por mecanismos cerebrais autônomos, mais ou menos o que Freud diria se fosse brasileiro : “Quem manda nessa joça aqui é o Inconsciente!”

Segundo o filósofo John Gray, que é meu parceiro na descrença no livre-arbítrio, “… processamos talvez 14 bilhões de bits de informação por segundo. A faixa de onda da consciência é por volta dos 18 bits. Isso significa que temos acesso consciente a um milionésimo da informação que usamos diariamente para sobreviver.” (citado por John Gray em Cachorros de Palha. Record, Rio de Janeiro).

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Claro que o meu amigo John como cientista e filósofo que é não aceitaria meus argumentos reforçadores dos programas herdados de outra vida. Para ele basta o que a ciência lhe diz e ponto final. Mas na minha prática de mais de trinta anos, posso constatar que nascemos sim com um pacote de informações e direcionamentos vindo de uma vida anterior. Como essas informações migram no tempo e no espaço essa é outra conversa que não caberia aqui.

Na verdade temos muito pouca liberdade de arbítrio e nem precisamos da ciência para nos mostrar isso. O clima nos limita e nos direciona, a genética muito mais, nossas glândulas então… nem se fala, e a cultura? Puxa vida, a cultura é a nossa grande senhora de escravos. Muito do que fazemos pensando que estamos exercitando nosso “livre-arbítrio” não passa de encenação de papéis que a cultura do grupo determinou para nós.

Então os árabes eternos fatalistas estão certos enfim? Somos reféns de um destino inexorável?

Também não é assim. A mesma neurociência nos dá um fiapo de esperança. O próprio Libet conclui que retemos uma capacidade de “veto”, ou seja deter ou abortar usando a Consciência, uma ação que o cérebro iniciou – é a importantíssima capacidade de dizer Não!

Não por coincidência que a maioria das escolas iniciáticas treina seus adeptos na via negativa o que significa dizer Não, deter algum tipo de processo ou ação indesejável. Mesmo assim John Gray nos coloca de volta à nossa insignificância quando diz: “Mesmo assim nunca podemos saber quando – ou se- exercemos o veto. Nossa experiência subjetiva é frequentemente, talvez sempre ambígua” (idem).

Mas não concordo com John quando ele diz que pelo fato de sermos quase tão inconscientes quanto os chimpanzés, não devemos ter ilusões de sermos tão superiores. Esse é um erro tão primário que nem é preciso ir longe para replicar: a própria capacidade do filósofo de elucubrar diante dessas questões tão melindrosas (para dizer o mínimo) é uma prova fatal de que somos mesmo uma espécie privilegiada diante das outras.

Podemos ser uma espécie esquizofrênica por natureza sim, uma espécie que constrói um navio de 1 bilhão de euros, com uma tecnologia que mais parece alienígena, para jogá-lo contra as pedras graças a um simples ato de vaidade-irresponsabilidade de um único homem.

Tomemos outro exemplo o cigarro e o vício do tabagismo. Começar a fumar não é, ao contrário do que parece, um ato de vontade. Quem começa a fumar em geral muito jovem o faz movido por um conjunto de fatores que vão da influência da propaganda, a inseguranças típicas da idade, curiosidade e cultura do grupo.

Quando o cigarro mostra ao cérebro a sua irresistível química, continuar a fumar passa a ser um determinismo químico-psicológico que domina a consciência completamente. Portanto, é um baita de um equívoco quando um fumante diz: “Eu não paro de fumar porque não quero, se quisesse, parava agora mesmo.” Na verdade quem está falando nem mesmo é a pessoa e sim a química do cérebro usando o aparelho fonador de seu “escravo” ou hospedeiro.

Já parar de fumar é um ato de vontade (principalmente quando não há nenhuma pressão médica), é a negação do prazer primitivo que a química proporciona às camadas profundas do cérebro e ao psiquismo. É uma deliberação baseada na RAZÃO, e precisa de doses maciças de Vontade, pois está contrariando prazeres primitivos e portanto poderosos. Isso é livre-arbítrio, ou pelo menos um pré livre-arbítrio.

A discussão da existência ou não de um fator “livre-arbítrio” passa por outras questões como o conceito de vontade, de consciência e da existência (e influência) do mundo espiritual.

Por ora vamos ficar por aqui, sabendo que se temos o poder, ainda que incipiente e incerto, de dizer Não, já é alguma coisa para se construir um novo modelo de ser humano verdadeiramente Humano.