Diferenças sociais acentuam-se no Natal

por Roberto Goldkorn

Escrevi esse texto há cerca de dez anos aqui no Vya Estelar. Como estou preparando uma coletânea desses textos, acabei encontrando-o. Ao reler o que escrevi há uma década, fiquei surpreso com a “coincidência” com fatos recentes acontecidos no Rio de Janeiro. Não costumo repetir textos, mas achei que este valia a pena. Espero que concordem. Feliz Natal!

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Muitos anos atrás estava eu, por uma série de circunstâncias, completamente só, às vésperas de Natal. Numa cidade de 10 milhões de habitantes, com tantos amigos e conhecidos, iria passar o primeiro Natal da minha vida sozinho.

Os sentimentos dentro de mim eram contraditórios.

Essa época do ano sempre foi complicada, sempre me deixou desconfortável, as razões nunca ficaram totalmente claras. Mas no dia 24, depois de alguns telefonemas de congratulações e explicações, preparei-me para celebrar a minha solidão, na noite em que as famílias celebravam suas verdades e mentiras.

De repente uma buzina insistente. Fui até a rua, e vi um amigo e sua mulher, acenando e gritando para mim. Queriam que fosse passar o Natal com eles, uma família de portugueses, simpáticos e em franca ascensão social no Brasil.

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Ainda tentei recusar o convite, mas como não tinha preparado nenhuma desculpa convincente, acabei me rendendo. Pensei: “Pelo menos vou me divertir e comer bem. Os portugueses são alegres e os melhores anfitriões que existem”.

A família estava com outros membros acabados de chegar da terrinha, cheios de bolos-rei, vinho do Porto e outras tentações, totalmente liberadas para quem na época nem sonhava com regimes.

Logo que cheguei fui cercado pelo carinho de todos e uma espécie de indignação ao saberem que iria passar essa data tão pungente sozinho.

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Numa certa altura o meu amigo me pediu um favor: que me fantasiasse de Papai Noel e entregasse os presentes. Eles tinham um casal de filhos (mais ou menos com 4/5 anos de idade), mas ainda havia uma outra criança, que não me lembro bem de quem era filho, mas certamente pertencia ao lado menos abonado da família.

Não podia recusar esse pedido, afinal de contas… Fui ao andar de cima, me paramentei todo, botei um travesseiro na barriga e o saco nas costas pesado de presentes.

Meu amigo disse que meu único trabalho seria pegar os presentes e ler os nomes que já estavam colados às caixas. “Moleza” pensei, “sempre quis fazer isso, e ver a alegria das crianças transbordando nos sorrisos nervosos, sendo surpreendidas pelos presentes”.

Mal sabia eu, que estava prestes a passar por um dos Natais mais impactantes da minha vida.

Desci as escadas já vocalizando o indefectível Ho Ho Ho, e observando as três crianças indo ao delírio (parecia que havia pelo menos umas dez na casa).

Com muito custo consegui começar a distribuição dos presentes. Os três, sentados, mesmerizados à minha frente.

Vamos chamar os filhos do meu amigo de Mário e Maria, e o outro menino de Nem.

Enfiei a mão no saco e lá vem o primeiro brinquedo, para o…. Mário, (todos aplaudem), o segundo para a …Maria (idem), o terceiro … Mário, o quarto Maria, e assim foi por alguns minutos. Eu já não conseguia encarar o Nem. Seus olhos no início faiscando, agora estavam meio opacos, ligeiramente úmidos.

Até que de repente, um presente para o Nem. O que é o que é? Ele ainda esboçou um sorriso de esperança, mas ao abrir o pequeno pacote, encontrou um joguinho de dominós. Eu estava arrasado.

Pela minha cabeça passavam todos os tipos de veículos que pudessem me levar para bem longe dali, o arrependimento, a raiva, a identificação – eu era aquele menino de olhos fundos e frustrados, mas era também um Papai Noel perverso, discriminador, um Papai Noel bandido, um antípoda de mim mesmo.

Minha cabeça começou a girar. Os risos, aplausos, gritos se misturavam aos uivos de desespero da minha criança interior, às acusações dos meus jurados internos e à condenação de quem sempre tentou fazer de tudo para ser justo.

Na minha mente embaralhada pensei: “Se daí a alguns anos o Nem se transformasse num perigoso sequestrador ou estelionatário? A culpa certamente seria minha, para ele eu era a encarnação da Injustiça Social, do deboche, das gargalhadas gordas e afluentes que fazem esse mundo ser tão mesquinho tão cruel.

Para ele, não importavam as minhas lágrimas ocultas providencialmente pela barba espessa, para ele não fazia diferença o meu passado de paladino e quixote das causas perdidas. Eu era O verdadeiro Papai Noel, em carne viva, aquele que só dá a quem já tem, o fim da fantasia, o Papai Noel Realidade, batendo na boca do estômago de um garoto magro, de 5 anos de idade!

Naquele momento todas as balas perdidas do mundo, ricocheteavam nas paredes lisas da minha cabeça, enquanto o meu piloto automático social continuava a desempenhar o triste papel até o fim do saco (ainda tive de entregar duas bicicletas para cada filho, que naturalmente não couberam no saco).

E por fim, Nem ganhou mais um brinquedinho (arrumado de última hora, com a etiqueta sendo escrita às pressas na cozinha).

Por um instante compreendi o porquê do meu incômodo ao se aproximar o Natal. É a época onde as diferenças se acentuam, se escancaram e a sensibilidade das pessoas, cutucada é claro, pela mídia, fica à flor da pele. Como não bebo, nem mesmo tive o consolo de me embebedar de vinho e champagne e estoicamente fui até o fim.

Depois disso, todos os anos, quando os shoppings se apinham de gente alucinada, trombando em busca de presentes, me lembro do meu Natal, na casa da bondosa gente amiga (sem ironias pois eles eram e são pessoas boas).

Lembro-me nessas ocasiões, que sou e serei sempre um desajustado, um gauche, por mais que me esforce. Apesar da idade, ainda não consegui a inconsciência necessária para me inebriar com os blen blens, os hos, hos, as luzinhas piscantes, e esquecer todo o resto. Mas, prometo, vou tentar não estragar a festa. Feliz Natal para vocês, feliz Natal Nem, onde quer que você esteja.