Traição é como ter o carro roubado, ainda não pago e sem seguro

por Roberto Goldkorn

Com raríssimas exceções, as diversas culturas espalhadas pelo planeta abominam a traição, qualquer tipo, mas principalmente a chamada traição do "contrato" sentimental.

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Uma história que está na Bíblia atribuída a Jesus mostra como a traição desperta os piores instintos humanos. Uma mulher acusada de adultério estava para ser morte por lapidação (apedrejamento) pela multidão, quando Jesus apontou o dedo na face escura de todos eles: Quem nunca pecou que atire a primeira pedra.

A resposta social à "traição" seria uma forma "civilizada" de tirar a pedra da mão do traído, de impedir a justiça com as próprias mãos. Mas no fundo não consegue esconder a verdadeira intenção social: tocar o terror, criar o medo nos corações mais saltitantes, e punir com crueldade desproporcional ao crime (não na visão deles) os traidores.

É claro que nunca se ouviu falar de um homem "traidor" sendo apedrejado pela multidão, nem de um homem sendo estuprado por dez quinze parentes da mulher traída na Índia – traição para a fogueira é só para as mulheres.

Converse com um homem "traído" e se ele for sincero vai falar de uma DOR que não tem como descrever. Um conjunto de sentimentos e emoções difíceis de explicar com a razão. Mas essa DOR, que não é física, mas pode chegar quase a sê-la, tem um grande componente cultural, de condicionamentos antigos e doentios.

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Como a sociedade é legislada pelo homem, a dor masculina é sempre maior e mais "justa" que a dor feminina.

Uma vez ouvi algo que pode ser uma pista interessante. Um conhecido fez a seguinte comparação. "Poucos anos trás, quando fui pegar meu carro, que custou tanto para comprar e pagar, a realização de um sonho de consumo, ele não estava lá. Foi como se um buraco se abrisse sob meus pés. A sensação é indescritível, é um misto de espanto, dor, ódio, desejos destrutivos inconfessáveis. Anos depois experimentei a mesma sensação de oco na barriga e dentes rangendo como cachorro raivoso, quando peguei minha mulher me traindo com um amigo. Foi muito parecido".

A pista aqui é o contrato de compra e venda que, apesar de antigo, vigora como sombra cultural na mente das pessoas que se unem formando um casal.

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Não devemos esquecer que há pouco tempo, adultério ainda era crime previsto em Lei. Mesmo abolido pela necessidade de avançar social e emocionalmente, permanece gravado profundamente nas almas culturais de todos, ou quase de todos nós.

Ser traído por aquele ou aquela que julgamos pertencer ao nosso acervo, é o mesmo ou quase, que termos o carro roubado (que ainda estamos pagando e não temos seguro).

A "traição" dói porque nos atinge em várias partes de nossa mente, mas sem dúvida a principal delas é a que nos diz que o outro ou a outra faz parte de nossas posses e pertences.

Ninguém sente prazer em ser roubado, a traição é de certa forma um roubo, alguém roubou aquele corpo, e o que ele me proporcionava, alguém roubou aquela intimidade, aquelas juras de amor e fidelidade, aqueles pensamentos que pensei serem exclusivos, os sentimentos que acreditei ter adquirido no "pacote", os sorrisos e palavras doces (e as mais secretas) que eu dormia pensando serem de uso exclusivo de minhas forças armadas.

Dor da traição é fruto do condicionamento cultural

Tudo isso porém não passa de condicionamento CULTURAL. Como dizia minha mãe cantarolando aos meus ouvidos: "Ninguém é de ninguém, na vida tudo passa…"

A vingança ou o pensamento de vingança e/ou da punição do culpado é uma consequência "natural" contra quem violou regras "sagradas". Energeticamente falando, a "traição" deflagra uma quebra de "contrato" e isso gera um desequilíbrio de forças. Para promover a restauração desse equilíbrio (alguns ainda chamam a vingança/punição de reparação, observe que é a mesma palavra que usamos para consertar algo que se quebrou), criamos a vingança ou a ideia da vingança, que quando é tomada nas mãos pelo grupo, se chama punição e é aceita consensualmente como algo JUSTO!

É claro que os mais tenebrosos instintos provocados pela traição, são atiçados e aumentados por outros fatores que costumam vir no pacote, e um desses principais fatores é a MENTIRA.

Conheço pessoas traídas que ficam repetindo como robôs avariados, que o mais sórdido na situação foi a "mentira". "Ela mentiu o tempo todo"! Repetia um desses entrevistados. "Ela dizia que ia para o dentista e na verdade ia para o motel com o amante, enquanto eu me matava de trabalhar para sustentá-la".

O "pacote completo da traição" e as emoções que deflagra é muito complexo e cheio de nuances, mas sua base é a cultura antiga da posse e exclusividade do outro. Essa é uma das culturas mais nefastas de todas, e ultimamente tem provocado um verdadeiro genocídio. Centenas de mulheres e um punhado de homens morrem ou são atacados furiosamente todos os meses no Brasil, por causa dessa programação cultural perversa que afirma que a relação amorosa é também e principalmente uma relação de posse e uso. Não posso ser tão simplista assim, afinal por que as pessoas "traem"?

As respostas são várias e complexas. A mais fácil de ser entendida é: o erro é da escolha original. Escolhemos o outro para estar ao nosso lado por pistas equivocadas. Passamos a projetar amor sobre o objeto de nosso amor, mas em geral esse objeto não passa de uma projeção ideal de nós mesmos. Não vemos e, portanto, não lidamos com o outro "real". No final nos apaixonamos por uma ficção, um Ego ficcional, fantasioso, um clone de nosso Eu.

Quando esse outro se mostra verdadeiramente e fratura a imagem com que "casamos" advêm o choque, a frustração e o ódio. Mas existem outras razões: o medo, a instabilidade emocional do parceiro, a carência sexual, afetiva, a cultura do "troco", a tentação do proibido… enfim existem muitas explicações para o fenômeno conhecido como traição.

Talvez seja muito difícil ter controle sobre as atitudes e decisões do outro que está na sua vida, mas a forma como você vai reagir é uma escolha absolutamente sua.

Não podemos deixar que uma cultura perversa, antiga e ultrapassada que estabelece a posse do corpo e da alma do outro seja causadora de tantos infortúnios e tragédias.

A vingança retaliadora, é o maior de todos os ENGANOS, porque torna o mal que o outro nos causou pior ainda, mais grave, mais completo.

Se eu por outro lado tomo a decisão de SER FELIZ, de não acusar o golpe, e se for o caso AGRADECER a Deus a oportunidade que Ele me deu, estou fazendo uma ALQUIMIA transmutadora- transformando fel em mel, mal em bem, amargo em doce e abrindo para mim horizontes de indizível beleza a felicidade.

Lembre-se: um relacionamento feliz hoje, pode ter sido ensejado por uma relação infeliz ontem.

Como dizia a minha mãe: "ninguém é de ninguém, na vida tudo passa…"