Exercício da psicanálise a serviço do paciente e não da psicanálise – Parte IV

por Luiz Alberto Py

Como prometi no artigo anterior (clique aqui), pretendo agora apresentar um fragmento de uma sessão de psicanálise, neste caso uma sessão de terapia de grupo. Durante ela, assinalo para meus clientes que estou percebendo uma ênfase muito grande posta naquilo que cada um considera como doentio ou, pelo menos, como defeito seu.

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Comento que estão valorizando mais seus defeitos do que suas qualidades; sua doença do que sua saúde. Acrescento que me parece que uma das causas desse fenômeno é o fato de que eles vêm procurar a psicanálise com queixas das quais pretendem se livrar (curar), em vez de se ocuparem com qualidades a serem desenvolvidas.

Um deles refere-se a uma crise de angústia que teve após a sessão anterior, similar a muitas que havia tido durante muito tempo, mas que há mais de 6 meses não tinha nenhuma. A peculiaridade dessa crise é que ela surgia sob a forma de um medo de enlouquecer e diminuía quando ele sentia que estava acompanhado de alguém. E sublinhava o fato de que a solidão o assustava sobremaneira.

Sugeri que suas palavras deixavam entrever a ideia de que ele se via como portador de uma loucura que contaminava a sua sanidade mental. E me parecia que a importância de uma pessoa próxima é que essa poderia tomar conta de sua sanidade mental, ou contê-la, enquanto ele ficasse envolvido com a doença, assim protegendo a saúde de ser contaminada ou destruída pela loucura.

Ele confirmou que a ideia fazia muito sentido e perguntou: “Mas o que posso fazer para me livrar disso?”

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Disse-lhe ter a impressão de que uma boa parcela da sua dificuldade era gerada pelo medo de enlouquecer o qual associei com o medo de andar de avião, e o sentimento de que ele deveria fazer alguma coisa para o avião não cair.

Nesse momento me ocorreu dizer-lhe que ele só poderia se livrar do medo da loucura, se aceitasse a loucura como um possível destino. Assinalei a semelhança entre esse medo da loucura e o medo da morte. Acrescentei ainda que tal medo deveria ter se instaurado primitivamente dentro dele e que me parecia haver nele uma forte crença de que o seu destino era enlouquecer. Ele concordou e perguntou: “Mas como eu posso fazer para não ter medo da loucura?” Essa pergunta era um progresso em relação à atitude anterior de ficar curioso sobre a origem da crença em vez de combatê-la.

Enquanto isso os outros ouviam atentamente e faziam comentários que mostrava a identificação deles com esse membro do grupo, o qual se apresentava naquele momento como porta-voz de uma angústia partilhada por muitos. Resolvi contar-lhes então uma historieta Zen.

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Conto zen

“Um professor de luta de espada foi contratado por um chefe militar para ensinar seus soldados. Quando um desses soldados procurou-o para ter aulas o mestre lhe disse: ‘Vejo que o senhor já é mestre. Gostaria de saber qual a sua escola antes de começarmos a nossa relação mestre/discípulo.’ O soldado afirmou que não era mestre e nunca havia aprendido nada sobre luta de espada. O professor então lhe disse: ‘Aceito sua palavra como verdadeira, mas se o senhor não é mestre de espada, de alguma coisa o senhor é mestre; meus olhos jamais me enganam quanto a isso.’ O guarda após pensar um pouco lhe revelou: ‘Creio que há uma coisa na qual me considero um mestre. Quando eu era criança e desejava me tornar um soldado, me ocorreu que para ser um bom soldado eu não poderia temer a morte em nenhuma circunstância. Durante muito tempo lutei com o medo de morrer e a ideia da morte, e creio que cheguei e me tornar um mestre na arte de não ter medo de morrer. Talvez seja isso a que o senhor se refere.’ E o velho mestre ouvindo essa revelação exclamou: ‘Exatamente, o segredo último da arte da espada é se libertar da ideia da morte!’”

Contei esta história para assinalar um possível caminho para meus clientes, mas percebi que naquele momento ela brotava de mim em função do fato de que eu estava ali procurando viver a arte de não ter medo de ser psicanalista, de não ter desejo de ser psicanalista e assim poder sê-lo (de acordo com uma reflexão mencionado no artigo anterior), sem o objetivo de atingir metas ou alvos, mas com a proposta de me encontrar comigo mesmo através de uma tarefa. De uma forma mais ampla creio que estou me propondo com isto a me tornar mais e mais capaz de exercer a arte de viver e também de transmitir àqueles que me procuram, como psicanalista, alguma coisa sobre esta arte em que tento todo dia me aperfeiçoar.

Na medida em que pratico a disciplina de não ter memória, nem desejo, principalmente o desejo de entender o que está se passando, percebo que cada momento do meu trabalho se processa num mergulho na escuridão e na confusão. Quando consigo suportar o desconfortável estado de dúvida e de ignorância a que me permito ser atirado pelas manifestações dos meus clientes durante a sessão; quando deixo que este estado se apodere de mim e me concedo a possibilidade de conviver com ele o tempo suficiente, em algum momento emerge alguma espécie de luz, de percepção. Esta acaba por tomar a forma de uma interpretação, da qual primeiro me dou conta, e a qual depois consigo, de alguma maneira, formular para meus clientes do jeito mais claro que me é possível. E isto é, para mim, fazer psicanálise.