Estamos perdendo a nossa sensibilidade

por Patricia Gebrim

Ando com vontade de comer o mundo.

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Lembrei-me de quando era pequena, bem pequena mesmo, e tinha esse instinto meio voraz, talvez herdado de tribos indígenas, aquelas que devoravam o coração ainda quente de búfalos recém-  abatidos, no intuito de se apropriar de sua força.

Minha criança selvagem queria comer livros, para assim apreender seu conteúdo, queria comer pessoas, para que elas morassem sempre em meu coração e ainda hoje tenho impulsos de morder tudo que acho fofo demais. Ainda sinto essa necessidade de trazer para dentro tudo o que torna a minha vida significativa, talvez por isso essa vontade de beber músicas, saborear poemas, sorver uma a uma as palavras de um bilhete de amor que não me canso de reler.

Selvageria? … Talvez.

Mas meu palpite é que tenho sede de vida. Não há como ser diferente quando olho ao redor e vejo o quanto as pessoas andam impermeáveis. Com a pele curtida e dura, nada lhes penetra um centímetro sequer. Vivem tudo do lado de fora,  cada vez mais anestesiadas. Já nem sabem o que é sentir, esse “fenômeno estranho e desconhecido” que alguns poucos e raros mantém vivo e que a maioria já considera uma passagem fictícia de um conto de fadas qualquer.

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Vejo muitas pessoas absolutamente hipnotizadas por esse mundo material colorido e convidativo, que existe do lado de fora de nossa pele,  feito de fórmulas prontas que saciam imediatamente, não dão trabalho, sequer requerem um mínimo de envolvimento ou criatividade. Não importa sua natureza efêmera, as pessoas se encantam e querem mais, cada vez mais.

Cada vez mais aprendemos a lidar com tecnologias diversas e com uma série de traquitanas dignas de filmes de ficção científica. Criamos foguetes, máquinas incríveis, celulares, computadores, televisões e até cafeteiras fantásticas que fazem os mais deliciosos cafezinhos com aquelas cápsulas lindas e coloridas (vai dizer que não é bom?). E assim vamos empobrecendo, pouco a pouco, sem perceber. Estamos perdendo habilidades humanas, essa é a verdade.

Eu adoro aqueles cafezinhos cheios de espuma, confesso, logo não me entendam mal. Se nos estendêssemos com tal sofreguidão “em ambas” as direções, para fora e para dentro, o equilíbrio se manteria. Mas o que acontece é que não estamos fazendo isso. Optamos pelo caminho mais atraente e menos trabalhoso e deixamos de cultivar as virtudes internas que moram para além da matéria. 

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Olhar para dentro requer algo que é cada vez mais raro nos dias de hoje. Certa dose de silêncio, parar as atividades, saber ficar só, aquietar a mente, fechar os olhos, saborear o simples que não vem em cápsulas coloridas e nem é vendido pronto nas prateleiras do supermercado ou nos sites de compra. Já não temos tempo para isso, além disso nos parece tedioso e meio “sem graça”. E é assim que estamos perdendo o que temos de mais belo.

– Estamos perdendo a nossa sensibilidade.

Conseguimos administrar cinco controles remotos ao mesmo tempo (TV, DVD, TV a cabo, caixas de som e sei lá mais o quê), mas não estamos mais sabendo ler os olhos das pessoas, não conseguimos mais perceber aquele sutil tremor no queixo de alguém que está se sentindo muito vulnerável, passamos direto pela dor e necessidade alheias, como se fossem irreais, e tratamos os sentimentos dos outros  como se fossem as renas de Papai Noel, o abominável homem das neves ou qualquer outro personagem que habite o mundo da fantasia.

O mundo interno, seja o nosso ou o das outras pessoas está sendo empurrado para o terreno da fantasia. Não existe nada mais triste e perigoso, a meu ver. É uma espécie de mutilação, e vai surgindo essa nova espécie de seres mutantes, com uma cabeça enorme e um vazio no peito, onde deveria existir um coração.

Nem sempre é confortável visitar nosso mundo interno, eu sei. Muitas vezes encontramos por lá uma coisa densa que aperta o nosso peito,  uma mão que agarra nossa garganta e faz rios brotarem de nossos olhos. Outras vezes somos surpreendidos por uma pedra que nos derruba e nos aperta contra o solo. Mas é lá que também nos banhamos em mel, encontramos asas com as quais tocamos o pôr-do-sol e o nascer das estrelas. É lá que, subitamente, descobrimos cores e sons que nunca imaginávamos existir, tal sua graça e beleza.

Visitar nosso mundo interno é a única forma de termos a certeza absoluta de que tudo o que vive, vive dentro de nós. Se você nunca visitou suas profundezas, talvez não encontre muito sentido nestas palavras, eu sei. Mas existe algo lindo por lá, algo que eu não conseguiria explicar mesmo se conhecesse as palavras mais lindas do Universo. Eu levaria você até lá, se pudesse… levaria todas as pessoas, animais, tudo o que vive. Mas não posso. Me resta tentar provocar sua curiosidade e desejar, com todas as minhas  forças, que você lute por sua alma e não morra em vida.

Sabe, não é preciso que a morte chegue para que deixemos de viver.