O mito do foco

por Roberto Goldkorn

“Era uma vez um pequeno lagarto que espreitou um inseto tão entretido em colher seu pólen que nem se deu conta do perigo. O lagarto focou pacientemente no inseto, fez a mira perfeita e zap! Lançou sua língua mortal e capturou o seu almoço. Tão concentrado ele estava em enquadrar o inseto que não se deu conta de que um grande pássaro o estava observando atentamente e mal o lagarto engoliu o seu almoço o pássaro deu um voo fulminante e pinçou o lagarto que ainda se debateu. Nesse momento um homem que estava vendo a cena de perto retesou seu arco e certeiramente acertou o pássaro que caiu. Ainda saboreando a recompensa pela sua paciência e concentração ele nem percebeu que havia subido num formigueiro de formigas assassinas que já escalavam a sua perna”

Continua após publicidade

“Hoje vejo com preocupação que todos estão cheios de suas razões, todo mundo tem foco, ou sonha em ter, como se fosse um relógio de marca ou um penteado da moda”

Hoje está na moda se falar de “FOCO”. Fulano não tem foco, os jogadores estão focados na partida, o bom executivo tem de ter foco na sua carreira e vai por aí. O deus da vez é o foco!

Todo conceito que se populariza e é repetido de forma leviana, se perde em labirintos de sutilezas, sub-significados e carências de compreensão.

De vez em quando sacralizamos certos mitos e vamos repetindo, reproduzindo sem que antes tenham passado por uma análise socrática ou taoísta para vermos o seu “outro lado”.

Continua após publicidade

Ter foco não é qualidade ou mérito por si só – loucos, psicopatas, ignorantes movidos por patologias mentais costumam ter foco, só que quando a loucura é demais chama-se de obsessão.

Dizer que uma pessoa é focada não nos diz absolutamente nada sobre o caráter ou a índole dessa pessoa. Nunca contrataria alguém apenas com essa informação – ao contrário muito foco pode esconder algum tipo de mente absoluta.

A História está cheia de exemplos de líderes cheios de foco, que insistiram em decisões equivocadas, (para não perder o foco), e levaram seus comandados ao desastre e à morte. Saber o que se quer com absoluta clareza nem sempre é virtude. Você conhece alguém mais focado que Hitler, ou que soubesse exatamente o que queria e como queria como Napoleão? Ou Bin Laden?

Continua após publicidade

A nossa sociedade valoriza demais as certezas (tanto é que uma frase, chavão popular, é a resposta “com certeza”), as “atitudes” e com isso vai abrindo espaço para todo tipo de psicopatas e psicóticos que mais que ninguém “sabem com certeza o que querem”.

Líderes fanáticos ou fanatizantes, são pessoas que têm absoluta certeza de suas convicções e podem contagiar quem têm sacos desocupados de certezas. Eles “têm um plano”. Aparentemente alguém com foco, que sabe exatamente o que quer, serve de farol às multidões que vagam nos oceanos das incertezas e dúvidas. E aí mora o perigo. Simular convicção é muito fácil, qualquer um com a mente suficientemente doentia e algum talento histriônico pode fazê-lo.

Lembro-me de um dos meus primeiros empregos como professor de inglês num curso para adultos. O coordenador me deu um conselho de alguém com anos de experiência (eu tinha acabado de fazer dezoito anos): nunca diga em sala de aula: “Eu não sei! Se não souber de algo, dê uma enrolada, muda de assunto, e depois vai checar e volta com a resposta na ponta da língua.” Na minha primeira aula tive a satisfação de poder dizer “Eu não sei, mas vou pesquisar no nosso próximo encontro falamos sobre isso”

Hoje vejo com preocupação que todos estão cheios de suas razões, todo mundo tem foco, ou sonha em ter, como se fosse um relógio de marca ou um penteado da moda.

Mais importante que o foco é a visão lateral ou o raciocínio lateral. Pensar e perceber o panorama geral e computar todos os dados disponíveis dos cenários possíveis e não apenas o “olhar fixo no objetivo” pode ser fundamental para o sucesso de uma tarefa ou missão.

O foco muitas vezes hipnotiza e nos deixa com aquela estranha convicção (muito comum nos políticos) de que tendo fixado a mira, o alvo não nos poderá escapar. Só que muitas vezes nos esquecemos de combinar isso com o alvo ou com as circunstâncias (chamadas também de variáveis) que envolvem a missão.

O olhar focado no objetivo muitas vezes desperdiça as inúmeras possibilidades do trajeto até esse objetivo. Como diz a sabedoria oriental “O verdadeiro objetivo é o caminho e não a chegada”.

Ter a coragem de exercitar as suas dúvidas em público, permitir que seu foco perca a nitidez diante de argumentos sólidos, dizer “eu não sei” – “pode ser que eu esteja errado” – essa é a verdadeira fórmula da sabedoria e da evolução pessoal e profissional.