Cultura do medo: é importante distinguir perigos reais dos imaginários

por Monica Aiub

Medo, segundo o Dicionário Aurélio, é um “Sentimento de grande inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário, de uma ameaça, susto, pavor, temor, terror”. Considerado um sentimento comum a todas as espécies, necessário para nos proteger em situações de perigo, para que tenhamos cautela, cuidado em nossas ações, o medo pode nos proteger, permitir que nos coloquemos de modo prudente nas situações, mas também pode nos impedir ou nos colocar em perigo.

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Você tem medo de quê? Como você lida com seus medos? Eles lhe auxiliam a ser mais prudente ou impedem suas ações?

Sendo relativo a um perigo real, o medo tem uma função importantíssima para orientar nossas ações e até garantir nossa sobrevivência. Permite-nos a prudência, tão necessária para conduzir a vida. Antonio Damásio, em O erro de Descartes, descreve o funcionamento orgânico do medo e apresenta a hipótese da necessidade das emoções para a tomada de decisões mais acertadas.

Imagine-se numa situação futura na qual ocorra algo muito bom, com consequências fantásticas a você. O que acontece com seus pensamentos, sentimentos, sensações diante dessa ideia? Agora imagine-se diante de uma situação futura na qual ocorra algo terrível, com consequências nefastas a você. O que acontece agora com seus pensamentos, sentimentos, sensações diante dessa ideia? São essas reações ao imaginado que nos auxiliam, segundo Damásio, nos processos de tomada de decisão, mas para avaliar as situações adequadamente, precisamos ter dados que nos permitam criar cenários coerentes com o real.

Sendo relativo a um perigo imaginário, o medo pode criar travas desnecessárias, pode ser um impeditivo às realizações, pode nos colocar em situações de perigo real, uma vez que não temos a dimensão do que se passa, e agimos movidos por uma afetação, sem termos por base a realidade. Damásio, agora no livro Em busca de Espinosa, descreve como o organismo interpreta um perigo imaginário com as mesmas reações relativas a um perigo real.

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Poderíamos afirmar, a partir das observações de Damásio, a importância em distinguirmos entre perigos reais e imaginários. Esta distinção poderia se dar a partir do conhecimento das causas de nossos medos.

Você costuma investigar as causas de seus medos? Compreende o que gera os medos? Ao identificá-las, consegue criar estratégias, instrumentos, para lidar com eles?

Isto seria bem mais fácil se o medo não fosse constantemente utilizado como forma de dominação. Vivemos uma cultura do medo, na qual, ele é promovido com o objetivo de manter e disseminar certas formas de vida. Aceitamos algumas condições da existência por medo; investimos em determinados setores por medo; deixamos de ir a certos lugares por medo; compramos alguns produtos e não outros por medo; deixamos de dizer o que pensamos por medo; e assim por diante. Estes medos são reais ou imaginários?

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A relação entre o exercício de poder e o medo é antiga. Encontramos muitas referências ao medo na  mitologia, na filosofia, na literatura, na história etc, mas destacarei aqui duas referências da Modernidade [apresentadas mais detalhadamente no livro Minorias (FiloCzar, 2016)], sempre presentes em nossos modos de vida contemporâneos:

Maquiavel, em O Príncipe, questionou: […] “É melhor ser amado que temido ou o inverso? A resposta é que seria de desejar ambas as coisas, mas, como é difícil combiná-las, é muito mais seguro ser temido do que amado, quando se tem de desistir de uma das duas” (p. 80).

Thomas Hobbes, em O Leviatã, ao tratar da linguagem que exprime as paixões, apresenta duas formas de medo: “O medo dos poderes invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos, chama-se religião. […] Quando o poder imaginado é realmente como o imaginamos, chama-se verdadeira religião. […] O medo sem se saber por que ou de que chama-se terror pânico, nome que vem das fábulas que faziam de Pan seu autor.” (p. 39-40). Mas afirmou também que os contratos somente são respeitados por “medo de alguma má consequência resultante da ruptura” (p.84).

Quantas coisas aceitamos por medo de uma má consequência? Quantas vezes deixamos de nos colocar por medo? Seriam estes medos reais ou imaginários?

Quando observamos as notícias do que ocorre no mundo, em nosso país, em nossa cidade, podemos dizer que elas geram medo? Medo real ou imaginário? Tenderíamos a responder que medo real, uma vez que são notícias. Mas também sabemos dos exageros, das interpretações, das construções e, principalmente, que os meios de comunicação de massa são, em princípio, disseminadores da cultura do medo, auxiliando a condução das populações.

Essa cultura não fica restrita aos jornais, ela se reproduz nas redes sociais, nas famílias, nas escolas, nos vários grupos nos quais estamos inseridos. Em alguns deles, aparece apenas como replicação de uma ideia dominante; em outros, é também uma forma de dominação no interior daquele grupo.

A filosofia, que tem como papel desde seu surgimento investigar as causas, a gênese, a origem das questões, coloca-se, diante dos medos, das inquietações, como uma forma de investigação, buscando distinguir: de que se tem medo? Isto é real? Quais as reais implicações desta escolha, desta ação neste contexto?

Talvez por isso ela seja, em muitos casos, algo a ser temido. Talvez por isso o filósofo tenha sido aproximado do louco, daquele que se distancia cada vez mais da realidade. Talvez por isso alguns “filósofos” tenham sido cooptados pela cultura do medo e, ao invés de investigar os medos, os disseminam como quem anuncia um futuro apocalíptico diante de possibilidades diferentes do viver.

Referências:
AIUB, Monica; COSTA, César Mendes da. Minorias: Da sociedade de consumo à sociedade do convívio. São Paulo: FiloCzar, 2016.
DAMÁSIO, Antonio. Em busca de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
_____. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
HOBBES, Thomas. O Leviatã (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2008.