Para que servem os carnavais?

por Roberto Goldkorn

Escrevo em pleno Carnaval de 2017. Mas o que me motivou não foi o Carnaval propriamente dito, e sim um texto que circula na Internet. Esse texto atribuído – supostamente – a um cronista do cotidiano muito inteligente e sagaz: Arnaldo Jabor. Por isso, não acredito que seja de sua autoria: diz que não há motivo para folia, nem para a alegria, nem para o desvario coletivo.

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Os milhões que vão às ruas atrás dos trios elétricos, blocos e escolas de samba são “otários”, “trouxas” segundo o texto supostamente crítico-feroz-patrulhador. O texto diz que não existe o mínimo motivo para a alegria sem rédeas desses dias de Momo:  a saúde pública está em farrapos, a roubalheira está escancarada, a educação de joelhos, a segurança da população nunca esteve tão frágil e blá, blá, bla. E mais, os políticos corruptos veem o Carnaval como um bálsamo: alguns dias de trégua, para que se reagrupem e contra-ataquem.

Sempre que vejo um texto que defende uma tese numa determinada direção, busco a sua validação. Para saber se é verdadeira a tese, a primeira coisa que faço, é colocar a tese em seu avesso e verificar se virada ao contrário ela se sustenta. Então vejamos: se todos os foliões trocassem a alegria pelas manifestações de rua, quebrando tudo ou ficando em casa (ou mais comedidos – idosos, crianças ou o sujeito da poltrona), o sistema mudaria? A saúde pública veria brotar recursos médicos, remédios, gaze, algodão, reforma dos hospitais e centros de saúde; as milhares de cirurgias adiadas ad infinitum seriam realizadas em tempo recorde?

Os políticos amedrontados com tamanha manifestação de mau humor dariam um control-out-del em suas mentes decrépitas e passariam a adotar uma nova mentalidade, importada talvez da Finlândia? A educação como num passe de mágica sairia da cartola da qualidade, os professores receberiam um santo nórdico ou sul-coreano assim como toda a cadeia produtiva educacional, e em menos de dez anos, seriamos uma digamos… Cingapura?

Nada disso. O erro estrutural/conceitual desse texto furibundo é que o Carnaval não é uma comemoração – não estamos comemorando nada – é acima de tudo uma celebração. A diferença é que na comemoração a gente festeja um fato, um feito, uma conquista. Na celebração, celebramos qualquer coisa, e acima de tudo a nós mesmos, a alegria de estarmos vivos, (atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu).

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Eu ia dizer que o Carnaval foi inventado pelos gregos antigos, em suas Saturnais, onde o bicho pegava e feio e não era incomum, os limites serem extrapolados e muita gente morria, lá valia tudo MESMO, inclusive, me perdoe o Tim Maia, “dançar homem com homem e mulher com mulher”. Mas me lembrei que entre os índios brasileiros existe o Carnaval de índio, menos extravasadores que o nosso é verdade, mas em compensação a sua sociedade é bem menos repressiva, muito menos reguladora.

Segredo do Carnaval

Aí que está o segredo do Carnaval: ele funciona como um alívio da pressão do ego sobre o Id (freudiano). Ou seja, durante esses dias, a válvula da pressão social é ligeiramente tombada, para que o material reprimido (e não suprimido) pela necessidade de vivermos contidos em sociedade (sabe aquele papo de que a minha liberdade acaba onde a sua começa?) se alivie, conheça o “aqui fora”, se esbalde, “solte as suas feras, caia na gandaia, livre, leve e solto”.

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Homens vestidos de mulher, mulheres vestidas de diabinhas, pobres fantasiados de nobres, freiras com um membro gigante debaixo do hábito – as fantasias regularmente guardadas (às vezes sem nem saber que existem e que estão guardadas) durante o ano, têm permissão para sair a céu aberto.

Lembro que na época do regime militar, sai no Carnaval vestido de pareô, uma saia tipo havaiano e de sunga por baixo, me esbaldei. Cantei, dance, pulei, passaram a mão na minha bunda e uma semana depois fui preso, torturado sem dó, por causa das minhas ideias subversivas (não eram apenas ideias, eu estava na ação). Não, não fui preso por que passei a mão na bunda da filha de algum general, eu já estava quase na barra pesada. Nada disso me impediu que eu celebrasse e me rendesse ao Rei Momo por dois ou três dias.

A ditadura passou, a dor passou, outros carnavais vieram. Outros regimes chegaram, estragos foram feitos, justiças e injustiças cometidas, ilusões vieram e se foram, esperanças vieram e se foram sem esperar. Foliões ficaram velhos e outros os substituíram, mas o desejo de sair do sério durante os dias regulamentares sobrevive e sobreviverá. Quem investe contra a festa pagã, seja qual for o motivo, está condenado à caixa da irrelevância da história.

Desfilar o luto pela avenida, formar o bloco do mau humor, entrar para o trio elétrico da crítica cáustica, não vai mover um milímetro sequer a engrenagem do progresso e da justiça social – para isso existem 361 dias (fora os feriados, ninguém é de ferro).

Se você pulou de se acabar parabéns – sobreviveu? Duplo parabéns.

Quanto aos casmurrões que se acham grandes ideólogos, só tenho uma coisa a dizer: vocês passarão, os foliões passarinhos.