Temos múltiplas personalidades

por Roberto Goldkorn

Ontem fui ao cinema assistir a um filme intrigante e forte nas emoções que se diverte em provocar nos espectadores: 'Fragmentado' (2017 – Direção – Night Shyamalan).

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Resumidamente trata-se da história de um sujeito que abrigava vinte e três personalidades ou egos distintos em sua mente/corpo. As personalidades se revezavam no controle e cada uma delas tinha um histórico (mais ou menos como os heterônimos de Fernando Pessoa) com seu sotaque próprio, sua faixa etária e até características físicas (uma delas tinha diabetes).

Claro que por se tratar de um filme, podia se dar ao luxo do exagero, e certamente muita gente saiu da sala de exibição sorrindo – depois dos sustos – relegando tudo aquilo para o depósito das ficções.

Mas não é bem assim.

No começo de minha carreira convivi com um médico baiano Dr. Eliezer Mendes, que trabalhava justamente com isso, seu livro Personalidade Intrusa me impressionou bastante, mas sua perspectiva era, basicamente, tanto conceitual quanto de tratamento, de um forte viés espírita.

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Com o tempo, fui percebendo que a nossa mente abriga sem sombra de dúvida, múltiplas “personas” se não simultaneamente, por certo ao longo de nossas vidas. Essas personas se revezam no controle de nossas ações e passos na nossa vida, e até se especializam para lidar de forma mais adequada às diferentes situações. Não percebemos isso como algo extraordinário, porque é tão comum. Quantas vezes, ouvimos um comentário: “Você não é a mesma pessoa com quem me casei”. Ou: “Era você mesmo ontem à noite? Parecem pessoas diferentes”. “Não estou te reconhecendo agora.” “A pessoa que está ao meu lado na cama, parece ter sido abduzida por um alienígena. Certamente não é a mesma de alguns anos atrás.”

Isso nos diz uma coisa: nosso cérebro/mente tem uma incrível plasticidade e ainda abriga camadas sem-fim de mistérios, a serem desvendados pelas gerações que virão.
Quem já viu um médium em um espaço espírita, servir de veículo para “entidades” tão díspares quanto uma criança birrenta, um guerreiro indígena, um preto velho de origem africana, um intelectual, uma mulher fogosa e por aí vai, sabe do que estou falando. Cada “entidade” traz junto, seu sotaque, seu vocabulário, um ritmo próprio na vocalização do discurso, uma postura corporal diferenciada e uma energia única.

Mesmo que você acredite, sem sombra de dúvida, tratar-se de um fenômeno espírita genuíno, ainda assim, deveria ficar alumbrado, com a capacidade do cérebro do médium para produzir todo aquele material tão diverso, sem ensaio, sem um texto para ser decorado e sem uma formação dramática, e controlar as manifestações das personas em suas reações físicas. Para quem não acredita, não deveria ser menos espantoso delegar tudo isso à mente destreinada de um operador, muitas vezes com pouca ou nenhuma formação intelectual maior.

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Os arquivos secretos do cérebro/mente nos guardam montanhas de segredos, que nos levam na direção oposta à crença de que somos um – um ser em forma de monobloco – coerente e indivisível.

Existem relatos de pesquisadores paranormais, fazendo regressão de memória, onde o sujeito reencenava personalidades que supostamente viveram em vidas anteriores, com uma riqueza de detalhes, de arrepiar. E mais, ao trazerem à vida essas personalidades (Egos) reviviam em momentos cruciais, as emoções (traumas ou alegrias esfuziantes) dessas vivências.

Claro que muitos já viram, pelo menos na TV, um hipnotizador dar uma cebola a um sujeito hipnotizado e ordenar para ele comer dizendo que era uma maçã. Quem já tentou comer sorrindo uma cebola crua, sabe que não é uma missão tão fácil. A hipnose funciona? Claro que sim. Mas como, de que forma ela consegue produzir e alterar a química cerebral a ponto de mudar bancos de dados sensoriais secularmente constituídos, eliminar ou ampliar nosso limiar de dor (conheci um pai de santo, que quando incorporado, queimava pólvora na mão e depois nem marca da queimadura ficava). O estímulo hipnótico vem de fora (ou de dentro), mas a “mágica” acontece totalmente dentro dos containers que contêm bilhões de neurônios.

Eu mesmo quando há anos atrás fiquei fascinado por essa possibilidade, pude dirigir a regressão de memória de uma jovem cliente que chegou numa existência anterior, onde havia sido violentada por seu padrasto. Ele a agarrou pelo pescoço e tentou estrangulá-la. Tive de intervir rapidamente, porque ela estava literalmente sendo estrangulada, asfixiada e poderia morrer, se eu não interviesse. Nessa vida, ela havia desenvolvido uma asma forte, certamente como memória residual desse episódio traumático.

Mas existe pelo menos um relato de falsificação de memória (deve haver muitos). Um sujeito de um experimento científico, foi levado a regredir no tempo até uma vida, onde relatou ter sido um oficial na guerra civil americana. Ele revelou seu nome à época, o regimento em que serviu e o ano de sua morte em batalha. Os pesquisadores foram atrás dos arquivos da guerra. Não encontraram o tal soldado. Retornaram e o levaram ao novo transe e o confrontaram com essa constatação. Perguntado sobre o porquê da mentira, ele apena sorriu e se calou.

Somos legião

O importante disso tudo é saber que somos legião! Somos muito mais uma colagem, que um autorretrato fixo no tempo. Cobrar uma rigidez, uma coerência “imexível” de nós mesmos é uma exigência impossível de cumprir.

Temos de nos acostumar com o fato de abrigarmos tantos eus dentro de nós quantos forem possíveis terem sido colecionados ao longo de vidas. Nosso DNA é o produto de bilhões de indivíduos, que forma um corrimão que se dissolve na névoa dos séculos passados (e por que não dizer dos milênios, ouvi dizer que um sujeito foi levado a regredir até a sua vida como uma bactéria primordial).

Nossa vida não seria a nossa vida sem essa herança cumulativa (meu cabelo é africano, meu nariz é de judeus asquenazis), certamente tenho em algum lugar recôndito da minha mente cérebro, memórias de África e da Europa Central, talvez da Idade Média ou de antes.

Da mesma forma que os mecanismos que produzem os nossos sonhos tendem a alegorizar os estímulos externos ou internos (criar enredos, histórias breves, a partir do recebimento pelos nossos proprioceptores) para proteger e dar sentido aos estímulos (somos todos dramaturgos de nascença). Ao acessar certos arquivos eles imediatamente são colocados num palco com scripts, cenário e direção.

Cada pessoa tem uma capacidade única de mobilizar emoções e reações psicossomáticas ao recuperar essas memórias. Não há dúvida, que em seu limite extremo, existem indivíduos que podem produzir uma tal dissociação ao abrigar certas personalidades internas a ponto de mudar suas feições, criar sensibilidades ou insensibilidades, ficar mais forte ou mais fraco a ponto de ser praticamente impossível reconhecer naquela manifestação o original. De certa forma já fazemos isso num nível primário de necessidades de ataque e fuga.

No filme a psicóloga que estuda o sujeito, afirma tratar-se de uma possibilidade assustadora que num futuro próximo, consigamos desenvolver a nossa mente a tal ponto de poder, acessar e trazer à tona, outras instâncias de personalidade tão diversas do nosso Ego social, quanto eu sou diferente do Brad Pitt ou da Madonna. A personalidade dominante do protagonista declara: “Nós somos o próximo passo evolutivo da humanidade.”

Se você acredita na manifestação mediúnica como descrevem os espíritas, ou não, pelo menos uma coisa deve admitir, o cérebro humano é extraordinário e ainda pode nos trazer surpresas inimagináveis ao conhecimento atual. Em todo caso assistam ao filme do diretor indiano Night Shyamalan – 'Fragmentado', e saiam inteiros se puderem.