Que olhos temos para a vida?

por Aurea Caetano

Consciência é o que dá a qualquer coisa a possibilidade de ser, não há vida humana sem consciência.

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No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra porém estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: "faça-se a luz!" E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à luz Dia, e às trevas Noite. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia.

Mitos de criação falam da existência de um todo primordial. Enfatizam a necessidade de separação em "o que está em cima e o que está embaixo" ou o "superior e o inferior", "céu e terra" como condição para o aparecimento de um espaço intermediário onde possam surgir os primeiros seres. Essa primeira separação seria imprescindível para a criação. Sem essa oposição primeira não há a tensão necessária para o aparecimento da vida. A partir dessa separação, e então do surgimento do mundo, dos vários seres vivos, dá-se a possibilidade de conhecer.

Não é possível haver conhecimento na escuridão, é necessário que se faça a luz. Só se pode conhecer aquilo que é o outro, o diferente, o "não eu" e só a partir desse conhecimento é que pode haver verdadeiramente o reconhecimento. Isto é, Deus, o mundo, o todo, o criador, precisam da consciência para se verem, para existir.

Willian James em seu "Principles of Psychology" tem um capítulo famoso onde fala sobre o "fluxo da consciência", dizendo que para quem a possui, a consciência parece ser sempre contínua, "sem brecha, ruptura ou divisão, jamais "recortada em pedaços". Consciência de algum tipo acontece, estados mentais se sucedem. Não se pode dizer pensa, assim como se diz, chove ou venta, então devemos dizer apenas que "thoughts goes on". Ou seja, pensamentos acontecem… a ideia é de que pensamentos, assim como chuva ou vento acontecem sem que haja uma atribuição de autoria. Não sou 'eu' que penso, mas o pensamento acontece, em um primeiro momento, sem que eu seja por ele responsável.

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Ainda segundo ele, cada estado tende a ser parte de uma consciência pessoal, em uma consciência pessoal estados estão sempre mudando, cada consciência pessoal é sensivelmente contínua e está sempre interessada em parte dos objetos enquanto rejeita outros, isto é, escolhe entre eles, o tempo todo.

Ele escreve isso no fim do século XIX, por volta de 1890, e suas ideias têm sido discutidas e repetidas até agora. Ele é considerado por muitos como o maior psicólogo de todos os tempos. A discussão sobre o que é a consciência afinal, passa pelas mesmas questões levantadas por Willian James. Ou seja, o que é que há de imutável que confere a alguém, a um sujeito, um sentido de si mesmo que permanece ao longo do tempo, o que é esse fluxo, então, que tem um "dono", um eu seu proprietário. E será que é possível decompor esse fluxo, e ver a consciência como uma infinidade de pequenos pedaços recortados, que vistos a partir de uma outra 'equação', se tornam a consciência em si.

Willian James diz ainda que "nosso estado mental nunca é o mesmo. Cada pensamento que temos de um determinado fato é, estritamente falando, único e tem apenas uma semelhança com nossos outros pensamentos acerca desse mesmo fato. Isto é, estamos sempre em modificação e ao mesmo tempo sempre permanecendo os mesmos "eus".

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Vale lembrar aqui o conto do sábio chinês que ao dormir sonha que é uma borboleta e ao acordar se pergunta: sou eu o sábio chinês sonhando com uma borboleta ou a borboleta sonhando que é um sábio chinês.

Num indivíduo normal, sem nenhum comprometimento neurológico mais sério, essa questão jamais será colocada. No entanto, cada um de nós já experimentou breves momentos de confusão mental, ao acordar em um lugar diferente do habitual, em uma viagem por exemplo, ou após um acontecimento traumático, após um sonho mais vívido. Mas, normalmente, essa pequena confusão dura apenas alguns segundos e logo recuperamos nosso senso de "eu mesmo".

A consciência, tão cara a nós humanos racioanais, não deixa de ser uma construção atualizada a cada momento, a partir da relação que temos com o mundo no qual vivemos ou habitamos. Todo conhecimento tem de ser visto a partir da cultura vigente na época e, mais ainda, cada olhar é particular, isto é, cada um vê o mundo com os olhos que tem.

Discutir a consciência tem a ver também com a possibilidade de perceber que olhos temos para a vida e como é que esse olhar foi construído ao longo de nossa história. E não há dois olhares iguais, porque não há dois sujeitos iguais, ocupando o mesmo espaço e tendo as mesmas vivências.