O que aprender com a morte de Sócrates?

por Roberto Goldkorn

Sócrates morreu. O maior de todos os filósofos foi condenado à morte por um tribunal ateniense formado por quinhentos cidadãos sorteados.

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Mas o que me importa a morte de alguém que viveu há mais de dois mil e seiscentos anos?

Talvez importe, talvez não. Cada um deve tirar a sua própria conclusão. Vamos socratizar?

Sócrates era um sujeito excepcional. Vivia numa cidade que faria inveja a maioria das cidades do mundo em termos de civilidade e organização. Sua grande missão autoinstituída era questionar; ficava numa praça à disposição das pessoas que vinham lhe trazer perguntas e dúvidas sobre todos os assuntos. Participava de jantares onde as pessoas se reuniam para ouvi-lo fazer seus questionamentos. Ele não respondia, apenas conduzia as pessoas através das perguntas certas, a chegar às conclusões mais próximas da verdade.

Sua obsessão era a busca da verdade. Achava que fora da verdade só havia o medo e a incerteza.

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Mas um dia, Atenas em guerra por mais de trinta anos com sua cidade vizinha e maior rival, Esparta, perdeu uma dessas guerras. Todos ficaram arrasados, a cidadania foi humilhada, e nesse contexto, um grupo de três sujeitos fez uma acusação formal a Sócrates: Acusaram-no de transviar a juventude ateniense falando de outros deuses, de bruxarias e de ocultismo.

No seu julgamento, ele se defendeu de forma soberba, mas em busca de bodes expiatórios. Sócrates foi condenado por uma pequena diferença de votos. Ele próprio deveria dizer qual a sentença que seria mais justa. Sabem o que ele propôs ao conselho? Que lhe fosse garantido um lugar entre os heróis da cidade, e que assim fosse alimentado e sustentado pelo Estado pelo resto da vida (que não seria muito, já que tinha setenta anos na altura do julgamento). O tribunal tomou aquilo como um insulto, como uma demonstração de suprema arrogância, e num novo julgamento foi condenado à morte. À saída do tribunal, alguns amigos aflitos o cercaram dizendo: "Que horror Sócrates você foi condenado injustamente!" Ao que ele socraticamente respondeu: "Que horror nada, vocês prefeririam que eu fosse condenado justamente?"

Ele se recusou a fugir como lhe foi oferecido, se recusou a recorrer. Tinha alguns amigos fiéis, muito ricos que lhe propuseram encontrar saídas para sua condenação capital. Ele recusou todas muito serenamente.

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O que se passava na cabeça de Sócrates? Por que caminhou para a morte injusta de forma tão resignada? Talvez essa frase atribuída a ele explique: "É mesmo uma pena" – dizia ele, "quando um homem descobre que algumas de suas crenças mais caras, são falsas, e por isso desiste de tentar encontrar a verdade. Ele devia culpar a si mesmo por não ser capaz de confirmar suas crenças, mas ao invés disso, se volta contra o próprio ato de pensar. E assim pelo resto da vida continua a odiar a razão e a falar mal dela."

Ele tem o crédito pela criação da palavra misologista – pessoas que odeiam o raciocínio. Sócrates não podia aceitar ser julgado e continuar vivendo no meio de misologistas. Ele era alguém que dedicou a vida a provocar, instigar o pensamento, não para benefício próprio de uma causa ou crença, mas para evolução do estado, e de cada pessoa. Ele se dizia uma "mosca" dedicada a picar e incomodar os atenienses, para que esses saíssem da zona de conforto mental e despertassem.

Sócrates entendeu que, da mesma forma que pessoas ficam temporariamente privadas de sua consciência (o que até a nossa lei reconhece), algumas sociedades também podem padecer desse mal. Um dos exemplos mais recentes é a culta Alemanha sob o domínio do nazismo. E o que acontece em geral depois que o "porre social" passa? Vem a ressaca, o acerto de contas. Logo depois da morte de Sócrates, a cidade inteira caiu em si, se deu conta do tamanho da burrada que se deixou cometer. Meleto, principal acusador e conspirador contra o filósofo, foi condenado à morte e o outro que se deixou seduzir pelo primeiro foi exilado. Uma grande estátua dele foi erguida em um dos principais caminhos de Atenas – a Via Sacra – e seu nome passou a ser exaltado… até hoje.

Voltando à pergunta inicial:

Por que a morte de Sócrates é importante para nós nesse momento?

Porque muitos de nós somos um pouco Sócrates, muitos sofremos com a burrice, com a mentira que teima em protagonizar entre nós, se travestindo reptilianamente de inteligência e verdade. Uma onda de depressão, desânimo e desistências assola os mais sensíveis. Muitos de nós, mesmo sem termos o raro talento de Sócrates, somos atingidos diariamente pela mentira, em suas diversas manifestações e formas. Mas dirão alguns de vocês socraticamente: Mudou alguma coisa então, da antiga Atenas para a nossa moderna sociedade? Não estamos cercados de Meletos e outros tantos medíocres e falsários, assim como Sócrates estava há vinte e cinco séculos? Qual a novidade? Por que o mimimi?

A novidade é o volume, a diversidade e a velocidade com que as tantas mídias nos trazem esses subprodutos da mente humana. Não há muitos escapes, somos assolados pelas toneladas despejadas pelos caminhões de dejetos, que de tão volumosos, exaltam a inversão de valores. Os acusadores de Sócrates querem nos convencer de que o errado é o certo, de que a mentira é melhor que a verdade, que o falso e o genuíno são a mesma coisa, que o raciocínio é uma arma perigosa e deve ser usado com moderação.

Os acusadores de Sócrates foram de uma veemência contundente, esbravejaram, babaram seu ódio irracional a ponto de convencer até quem conhecia bem a inteligência de Sócrates sempre colocada a serviço da verdade. Platão nos relata esse julgamento em seu maravilhoso 'Apologia. de Sócrates', falou serenamente, sorria o tempo todo, estava assustado, mas não atemorizado. Assim é que devemos agir diante da disseminação da mentira e da burrice, assustados, mas não atemorizados.

Mas não devemos seguir o exemplo autoimolador do filósofo que deve ter pensado: "Estou muito velho para aguentar uma merda dessas. Chega, para mim já deu" ou algo assim. Devemos resistir.

Admito que a insana estupidez é militante e costuma agregar adeptos raivosos e ruidosos. Não se deixem enganar pelo rugido da turba que grita mais alto (afinal a mentira precisa mesmo ser gritada, repetida e novamente gritada). Vamos exaltar o raciocínio, vamos buscar a verdade como chave para desmontar as mentiras – iluminá-las para desentocá-las. Os mesmos tentáculos sem fim das nossas mídias, que servem à desinteligência, podem também nos servir.

Ouçam mais uma vez a voz de Sócrates:

"Que eu possa parecer aquilo que sou.
Que possa encarar a sabedoria como única riqueza.
E que a minha própria riqueza
Não seja maior que eu possa suportar."

Vamos nos animar. Não permitamos que Sócrates morra outra vez com a nossa desistência.

Vamos desenvolver em cada um de nós a mente questionadora, insaciável, onde habitam os "porquês?" Virem, revirem, cutuquem, não em busca de vencer debates ou de se sobreporem aos outros, mas para vencer e se sobrepor a si mesmos. Pareço até o Sócrates falando, acho que o espírito dele baixou em mim.