Yoga sutras: essência dos ensinamentos filosóficos yogues

por Gilberto Coutinho

Aclamado por toda a Índia e por especialistas do mundo inteiro como um tratado – shastra – fundamental do Yoga Clássico, os Yoga Sutras de Patañjali (codificador do yoga) apresentam e elucidam de forma sábia, completa e profunda, na forma de 194 sutras ou aforismos, toda teoria da “Ciência do Yoga”, assim como suas diversas técnicas. Nele encontra-se a essência dos ensinamentos filosóficos yogues.

Continua após publicidade

O autor desse impressionante e importante tratado de filosofia yogue é tido como o mesmo Patañjali que escreveu o famoso Mahabhasya (“Grande Comentário”) a respeito de regras gramaticais do sânscrito do tratado (ou aforismos) de Panini. Outro trabalho também atribuído a Patañjali é um importante tratado de medicina. Patañjali não foi apenas eminente gramático e um grande filósofo, mas também um grande médico. Em sua abordagem, ele tratava do corpo, da mente e do espírito como um todo. O período em que Patañjali viveu, na Índia, é fixado no século III antes de Cristo.

Patañjali sistematizou, codificou e compilou de forma concisa e perfeita todo ensinamento filosófico e técnico do Yoga; é, portanto, considerado o grande “Codificador do Yoga”. Esse célebre sábio e yogue é tido como um dos três mais famosos gramáticos do idioma sânscrito da antiga Índia; os outros dois são Panini e Katyayana.

O tratado a ser estudado é composto de quatro capítulos:

(1) Samádhi pádah – a trilha que conduz à contemplação e/ou à “iluminação” (51 sutras);

Continua após publicidade

(2) Sádhana pádah – o caminho da prática (55 sutras);

(3) Vibhúti pádah – o caminho dos poderes ou siddhis (54 sutras);

(4) Kaivalya pádah – o caminho que conduz à absoluta independência ou à emancipação final (34 sutras).

Continua após publicidade

Considerações:

Antes de surgir a escrita na Índia, todo conhecimento existente naquela época, os ensinamentos dos Vedas, do Yoga e da medicina Ayurveda, de outras escolas filosóficas (dárshanas), assim como as tradições culturais e religiosas eram transmitidos oralmente, em sânscrito (dentre outros dialetos falados), de pai para filho, de mestre (guru) para discípulo (síshya).

Na tradição do Yoga, essa transmissão do conhecimento era feita oralmente, de “boca a ouvido”, través de uma respeitosa sucessão discipular, de mestre para discípulo, geralmente, na forma de sutras, obedecendo a uma rígida disciplina, austeridade e hierarquia, chamada de “paramparaa” (parampará). Com o surgimento da escrita dêvanágari, tais conhecimentos passaram a ser registrados em folhas de palmeiras (na forma de livros), tecidos de algodão, em rochas, metais etc. O sânscrito é uma antiga língua indoariana que se tornou o idioma sagrado da civilização brâmane.

O termo Yôga apresenta diversos significados e pode ter a sua origem em duas raízes sânscritas, a primeira, com o significado de “entrar em contemplação, meditar”; e a segunda, de “atar, ligar, unir”. Ambas as raízes são aceitas. No caso daquela que apresenta o significado de “unir”, o Yoga passa a significar a ciência que ensina o método de unificar a alma humana com o Criador. Transmitido pelo grande mestre yogue Shiva, o Yoga tornou-se posteriormente uma das seis escolas clássicas de pensamento ou filosóficas – Dárshanas – mais importantes da antiga Índia, assim como o Samkhya, o Nyáya, o Vaishêshika, o Mimansa e o Vedanta.

Um dos objetivos mais importantes do Yoga é libertar o homem das engrenagens da matéria, sendo que a sua forma mais sutil é a mente, a consciência ou a psique (chitta ou manas).

Dárshanas são escolas filosóficas ou antigos sistemas filosóficos que ocupam uma posição privilegiada na cultura e ciências indianas, considerados autorizados por apresentarem “pontos de vistas” com bases bastante sólidas de raciocínio e prática. Em sânscrito, “dárshana” significa “visão”, “consciência”, “escola”, “sistema”, “método”, “compreensão”, “consideração”.

Sutra (suutra) significa “fio”, “cordão” (cordão sagrado que os brâmanes usam transversalmente em seu tórax) e/ou aforismo. É um termo genérico para tratados escritos na forma de aforismos. Aforismo é uma frase de caráter sentencioso que pode encerrar, de modo conciso e objetivo, uma apresentação, um pensamento, um conceito, uma descrição, uma análise, uma conclusão, uma advertência e/ou um conhecimento a respeito de uma ciência; às vezes, um tanto enigmático.

Cada aforismo encontra-se conectado com todos os outros por esse “cordão”. Cada sutra só pode ser amplamente compreendido a partir do entendimento correto do sutra subsequente e dos Yoga Sutras como um todo. O estudo inicial dos Yoga Sutras requer o acompanhamento de um professor yogue experiente e com grande conhecimento do Yoga. Tal tratado pode ser visto como um cordão de pérolas ou de preciosos ensinamentos a respeito do Yoga.

Os ensinamentos filosóficos yogues são para serem estudados e praticados em todos os momentos da existência humana: na juventude (como disciplina, autocontrole, autoconhecimento e lembrança de que a vida é efêmera); na saúde (para a manutenção do bem-estar e da vitalidade); na maturidade (para a compreensão mais profunda da vida e da existência humana); na alegria e euforia (para lembrança da equanimidade); nos momentos de atribulações (para trazer luz, compreensão, aceitação, sabedoria e paz de espírito); na pobreza (superação das fragilidades); na riqueza (para ensinar o desapego e a não ganância); na doença (aceitação, aprendizado e superação); na velhice (manutenção do bem-estar, da vitalidade e da paz interior); e, inclusive, no momento que antecede a morte física (para lembrança de que a vida é uma passagem).

Na Índia, a escrita mais amplamente utilizada no alfabeto sânscrito é a devanagari (“deva” = divindade, deus, brahman ou celestial e “nagari” = cidade, urbano; escrita da cidade, escrita sagrada da cidade, escrita urbana dos deuses). Muitos idiomas na Índia, como o Hindi, o Marata, o Caxemira, utilizam a escrita Devanagari, assim como diversas outras línguas do continente asiático, como o Nepalês (falado no Nepal), usam variantes dessa escrita. O alfabeto dêvanagári é silábico, composto de 12 vogais e 34 consoantes, descende da escrita Brahmi, do sul da Ásia, por volta do século XI ou XII d.C., e deu origem à escrita sânscrita. É escrito e lido da esquerda para direita, em linhas horizontais.

As primeiras grandes civilizações da antiga Índia – Mohenjo-Daro e Harappa – desenvolveram-se no Vale do Rio Indo, na região de Punjab e Sindh (atualmente, localizadas no Paquistão), a cerca de 3000 a.C.. Por volta de 2500 a.C., essas duas progressistas cidades alcançaram o seu apogeu, com um sistema de escrita bastante interessante e original baseada em hieróglifos (pequenos selos de pedra trabalhada), como aqueles utilizados pelos egípcios, e conquistaram um domínio geográfico maior do que o império egípcio ou da Mesopotâmia. Por volta de 1800 a.C., essas duas civilizações entraram em colapso. Ainda hoje, tal escrita permanece indecifrável.

Alguns Sutras:

SUTRA I.2 – YOGAH CITTA VRTTI NIRODHAH.
YOGA É A SUPRESSÃO DA INSTABILIDADE DA MENTE.

Yogah (Yoga). Citta (mente, consciência). Vrtti (instabilidade, modificações, flutuações, mudanças, várias formas, movimentos, atividades). Nirodhah (restrição, supressão, interrupção, controle).

Comentário:

Com esse sutra, Patañjali conceitua o Yoga. Aqui, a palavra mente (citta) apresenta um significado mais amplo: aspecto mais sutil da matéria, psique, inteligência, pensamento, sentimento, emoções, consciência e inconsciência. As flutuações, modificações e a instabilidade das atividades da mente são consideradas a causa de todo sofrimento humano.

Para refletir:

(1). É possível alcançar tal estágio de estabilidade mental? Como?

(2). Mediante o estudo e a prática do Yoga, poderei tornar-me mais consciente do que sou, de minha real natureza, de como estou vivendo, de minhas escolhas e metas e do que estou fazendo?

(3). O que acontece com a mente, quando você se concentra em algo de forma profunda e prolongada?

SUTRA I.3 – TADA DRASTUH SVA-RUPE AVASTHANAM
ENTÃO (QUANDO TAL ESTÁGIO É ALCANÇADO OU QUANDO A MENTE SE CONCENTRA), O SER INTERIOR SE ESTABELECE NA SUA PRÓPRIA NATUREZA OU REALIDADE.

Tada (então). Drastuh (o ser interior, a alma). Sva-rupe (na sua própria forma ou natureza). Avasthanam (estabelecer, permanecer, fixar, repousar).

Comentário:

Segundo essa descrição, Patañjali afirma que a real natureza de nossa consciência ou do “ser” que habita o nosso interior é como aquele estágio (referindo-se ao sutra anterior) em que se verifica uma completa supressão da instabilidade da mente e uma perfeita liberdade (e que ele denomina de Yoga). Quão interessante e surpreendente é tomar conhecimento de nossa própria e verdadeira natureza interior!

Para refletir:

(1). Alguma vez, eu já havia refletido a respeito de minha própria natureza interior além do aspecto espiritual? Como eu a enxergava ou a intuía?

(2). Como posso expressar no dia a dia a minha verdadeira natureza interior?

SUTRA I.4 – VRTTI SARUPYAM ITARATRA.
CASO CONTRÁRIO, NOS IDENTIFICAMOS COM AS ATIVIDADES OU A INSTABILIDADE DA MENTE.

Vrtti (instabilidade, atividade mental, modificações). Sarupyam (identificação). Itaratra (de outra maneira, caso contrário).

Comentário:

Para o Yoga e o Samkhya, o princípio da consciência (purusha) não é afetado por qualquer que sejam as modificações ou a instabilidade da mente durante seu estado de atividade. Entretanto, é a partir do ego ou do sentido de individualização (ahamkara) e da mente (manas) que a existência humana é afetada. É do ego afetado pela instabilidade ou pelas modificações da mente que nascem os conflitos e os sofrimentos humanos.

Para refletir:

(1). Por que é mais fácil nos identificarmos com as atividades da mente?

(2). Seria o ahamkara ou o sentido de individualização que faz com que todas as criaturas viventes sejam como elas aparentam ser: únicas e distintas uma das outras?

(3). Qual o sentido do ahamkara na existência humana e dos seres vivos? Para que ele serve?

SUTRA I.5 – VRTTAYAH PANCATAYYAH KLISTAH AKLISTAH.
AS ATIVIDADES DA MENTE SÃO DE CINCO TIPOS, AS QUE PRODUZEM SOFRIMENTO OU NÃO.

Vrttayah (atividade mental, modificações, instabilidade). Pañcatayyah (de cinco tipos). Klistah (que produz sofrimento, aflição, dolorosa). Aklistah (que não produz sofrimento, não dolorosa).

Comentário:

Patañjali menciona a existência de cinco tipos de atividades mentais. Tais atividades encontram-se interligadas, portanto devem ser refreadas, independente de causarem, ou não, sofrimento.

Para refletir:

(1). Qual a real causa das aflições, conflitos e sofrimentos humanos?

(2). Por que a existência humana é repleta de sofrimentos?

(3) Por que nos encontramos mais suscetíveis aos conflitos e sofrimentos?

(4). Pode o homem se libertar do sofrimento e viver sem ele?