E-mail enviado por uma leitora:
“Doutor, o que fazer para parar de cheirar cocaína? Eu não suporto mais esse vício que me dominou. Tenho um bebê de três meses e estou entrando em depressão. Sinto que vou morrer. Por favor, ajude-me, ele precisa de mim.”
Resposta: Mulheres que abusam de substâncias psicoativas podem engajar-se em comportamentos parentais inadequados, os quais interferem significativamente com o desenvolvimento pelos infantes da capacidade de vinculação e de interação social. Deficiências na habilidade de cuidar dos próprios filhos podem produzir relevantes consequências negativas para eles, tanto do ponto de vista emocional quanto comportamental.
Podemos considerar três mecanismos pelos quais os cuidados dispensados aos filhos pelas mães usuárias de substâncias psicoativas podem ser prejudicados:
a) alterações provocadas pelo consumo repetitivo de substâncias psicoativas na capacidade materna de entender e/ou assimilar os estímulos incitados pelos filhos;
b) a influência das próprias substâncias psicoativas sobre o estado psicológico das mães (habilidade de expressar emoções, capacidade para regular as emoções, crenças distorcidas ou errôneas relacionadas com as práticas parentais);
c) os relacionamentos sociais da mãe usuária de substâncias psicoativas podem ser bastante inadequados para os seus filhos. Por exemplo, o pai da criança também é usuário de substâncias psicoativas, os amigos que frequentam o lar fazem parte de uma rede de usuários, dentre outros contextos.
Dados estatísticos publicados pelo NIDA (National Institute on Drug Abuse; 2018) mostram que homens consomem substâncias psicoativas mais frequentemente do que mulheres; ao contrário, as mulheres usuárias de substâncias tendem a apresentar mais consequências clínicas negativas advindas deste consumo do que os homens, tais como prejuízos no comportamento (maior impulsividade), na interação social, em complicações orgânicas e em problemas psiquiátricos. Esta maior chance de experimentar complicações clínicas nas mulheres usuárias pode estar relacionada aos hormônios sexuais femininos, tais como a progesterona e os estrogênios. Tais hormônios exercem notável ação sobre o sistema de recompensa cerebral, bem como sobre o sistema cerebral associado com a atenção.
A maternidade definitivamente não combina com o uso de substâncias psicoativas. Os comportamentos relacionados ao aconchego junto ao filho, que são prazerosos, envolvem também circuitos cerebrais de recompensa. Ocorre que as substâncias psicoativas utilizam estas mesmas vias neuronais de recompensa. Desta forma, o uso de substâncias toma conta do prazer em lidar com o próprio filho. Outrossim, vias cerebrais envolvendo a ocitocina (hormônio com atividades cerebrais e em outros órgãos do corpo) podem ser alteradas com o uso da cocaína, reduzindo a motivação para dispensar os devidos cuidados maternais. Em consequência, os filhos acabam por sofrer pela falta de cuidados e de respostas adequadas por parte da sua genitora, mostrando dificuldades para estabelecer vínculos e redução da flexibilidade cognitiva ao longo do primeiro ano de vida e posteriormente.
Tendo estas vias neuro-hormonais afetadas, a mãe também demonstra um retardo em reconhecer as necessidades dos seus filhos e, consequentemente, em prestar auxílio nos momentos necessários.
De qualquer forma, muitas das mães usuárias de cocaína acabam percebendo as mazelas causadas nos seus filhos. Esta percepção consiste em mais uma fonte de estresse e um fator de risco para a busca de mais drogas.
Lembremos, aqui, que o usuário repetitivo de cocaína consome a droga não apenas devido ao prazer (reforço positivo), mas também diante de eventos estressantes e negativos (reforço negativo). Desta forma, desenvolve-se um ciclo problemático que precisa ser interrompido urgentemente.
Veja este esquema abaixo de como este processo (ciclo) se instala:
Uso de cocaína recorrente pela mãe → Percepções distorcidas sobre os estímulos dos próprios filhos → Mãe com maior sensação de estresse e menor sensação de prazer → Aumento da fissura pela cocaína e busca da droga → Mãe usuária sente-se impotente e filhos apresentam problemas de interação/vinculação afetiva
Não há outra solução para o seu problema que a busca por tratamento especializado. Não deixe de revelar aos profissionais especializados que você é mãe de uma criança de três meses de idade e que você está preocupada com o bem-estar do seu filho. Os profissionais da saúde deverão avaliar o seu problema, estabelecer uma fórmula terapêutica e propor todos os meios necessários para a sua recuperação.
Manter uma ideia de que você conseguirá superar o problema sozinha não é aceitável neste momento. Também é importante reportar aqui que todos os profissionais da saúde conhecem a importância da presença da mãe no desenvolvimento dos seus filhos. Desta forma, as propostas de tratamento deverão focar na promoção da abstinência, na manutenção da abstinência e no bem estar do seu filho.
Procure urgentemente o tratamento. Este ciclo de “uso – estresse – cuidados inadequados – mais uso de cocaína” não cessa subitamente.
Não perca mais um segundo sequer.