As academias de musculação tornaram-se uma presença obrigatória na vida das pessoas do Século XXI. Em cada bairro, em cada pequena cidade do interior, em shoppings caros, envidraçadas para melhor se visualizar o corpo, elas estão lá, quase por toda parte. Difícil encontrar alguém que nunca malhou em uma academia por algum período da vida.
Aparentemente esse é um aspecto da nossa época difícil de ser entendido. Claro que isso pode ser atribuído ao egoísmo e à vaidade, ao culto do aparente e passageiro, a algo superficial, ao desejo de manter-se jovem para sempre. Daí decorreria uma extrema preocupação consigo mesmo e com seu corpo. Entretanto, não é isso o que ocorre porque o ego não é seu corpo, ele tem um corpo.
O corpo é a expressão do ego
Na verdade, o corpo é a expressão do ego, aquilo que este conseguiu fazer com a carne. Me explico. No século XX o ego deu-se conta de que o corpo não era natural. Isto é, que seu corpo não era algo que lhe era dado assim como é desde sempre. O seu corpo era uma produto de uma série de elementos culturais, de práticas de convivência. Assim, ser homem ou mulher, por exemplo, não era algo que era próprio de cada uma das pessoas, de sua constituição biológica e sim algo que nos tornávamos em função do ambiente cultural em que vivíamos. Ser homem ou mulher era o resultado de um conjunto de práticas sociais que, em última instância, moldavam as características sexuais de cada pessoa. A carne por si só nada dizia sobre o que era o corpo. Quem dizia era a cultura em que vivíamos.
Seu corpo
Assim, o ego percebeu seu corpo como um resultado de intervenções que não controlava. Por isso, ele passou a referir-se a ele como seu corpo, algo que ele tinha, mas que não era o próprio ego. Afinal, as práticas sociais que moldavam seu corpo não estavam sob seu controle, justamente porque enquanto formas de convivência, elas escapam sempre da vontade de uma só pessoa. Se algo é uma prática social, isso quer dizer que ela depende da interação entre várias pessoas e não se resume à vontade de uma só.
Nesse sentido, o corpo tornou-se um limite para a liberdade do ego. Estava ali, diante dele – refletido nos espelhos das academias – um corpo que falava a linguagem do ambiente social em que o ego vivia. Portanto, o corpo era aquele elemento muito palpável e sólido, um signo da falta de autonomia do ego, um muro que se interpunha a ele. Algo que erámos nós mas que, ao mesmo tempo, eram os outros em nós – a sociedade em que nascemos e crescemos e que não foi objeto de nossas escolhas, nossos contemporâneos e nossos antepassados. Afinal, o sistema de valores de uma cultura não passa por referendos democráticos: eles já estão lá quando nascemos. O corpo era aquilo que a sociedade fez do ego, um limite, uma imposição que escapava inteiramente ao controle de sua vontade.
Em função da necessidade de ampliar sua liberdade, em função de seu sentimento de incapacidade de exercer pelo controle sobre si mesmo, o ego empenhou-se em submeter o corpo à sua vontade. Trata-se, agora no Século XXI, de tomar posse de seu corpo, retirando-o do domínio da sociedade, daquilo que os outros dizem que o corpo é. Se vamos à academia é por nos sentirmos impotentes diante de nosso corpo, por desejarmos dominar a carne que nos é dada com a vida.
Corpo = campo de batalha
Nesse sentido, o corpo tornou-se um campo de batalha, um espaço em que o ego luta por sua liberdade, pela posse plena de si mesmo, a despeito da força que a vida social exerce sobre ele. O corpo malhado, o corpo maquiado, o corpo alterado pelo silicone ou pelo botox, o corpo tatuado, o corpo que nos tornamos segundo o que desejamos, é a tentativa do ego de colocar-se acima das forças sociais que o moldavam no passado. O corpo que não alteramos é um corpo que nos domina, uma força estranha que nos controla.
Em certo sentido, o que o ego tenta fazer da carne – que ela expresse sua vontade – não é diferente daquilo que a ciência faz com a natureza: se trata de controlar algo que lhe parece uma imposição externa, de algo que limita sua liberdade, de colocar sob nosso domínio algo que, antes, nos dominava. A técnica é justamente a introdução da vontade humana no mundo, de tal forma que o mundo passe a nos servir.
Nesses termos, a relação do ego com seu corpo é uma disputa de poder, uma relação de dominação em que se tenta a substituição de forças externas por forças internas. Se trata, portanto, da expansão do mundo do ego, da extensão de seu domínio até aquilo que lhe é mais próximo: seu corpo.
Depois de conquistada a última fortaleza inimiga do ego, nada mais poderá se impor sobre ele. Então, o que restará? Talvez perceber que o mundo nunca foi um inimigo.