por Roberto Goldkorn
Quando fui preso pelo regime militar em 1969, depois de passar por uma sessão de porrada e choques elétricos, fui colocado no “pau-de-arara”[1]. Era a forma de tortura que eu mais temia. Fui pendurado ali e o interrogatório continuou, mas sem choques ou porrada, embora os fios da maquininha de choque já estivessem enrolados no meu dedinho do pé.
Quando insisti que não sabia o que estava sendo perguntado, eles resolveram me dar um crédito e foram buscar o meu contato na organização que também estava preso no mesmo lugar.
Fui avisado de que se ele me desmentisse, eu estaria ferrado. Fiquei pendurado ali alguns minutos que pareciam de elástico. Estava encapuzado, mas pude sentir uma presença diferente na sala e algumas vozes se alterando. Preparei-me para o pior e rezei pedindo proteção aos meus anjos. Mais alguns instantes de silêncio, e começo a ser descido da trave. Minha história havia sido confirmada, miraculosamente. Continuei a ser interrogado, mas sem choques nem porradas, apenas alguns gritos e ameaças mas nada que não pudesse ser controlado. Tive uma sensação muito nítida de uma intervenção espiritual.
Mecânica obscura
Durante anos vivi um conflito interior em relação a esse episódio e a outros que se seguiram. Se existem mesmo seres angelicais que nos protegem, se especificamente algum deles estava comigo e impediu que eu fosse torturado no “pau-de-arara”, por que me deixaram chegar até ali? Por que permitiram que um imbecil pisasse com seu sapato no meu rosto? Por que permitiram e permitem tantas barbaridades? Levei décadas para entender essa mecânica obscura.
Reparem que coloquei o verbo entender em itálico, na verdade deveria ter colocado a palavra risos logo depois. Mas cheguei a algumas conclusões baseadas num mix entre intuições e pensamento buscador. Os anjos não poderiam impedir a minha prisão e a lógica que se seguiu por questões óbvias: eu decidi entrar na chuva, ou seja, assumi correr o risco de me molhar. Infelizmente tenho que entrar naquele velho chavão cristão do tal livre-arbítrio, embora eu não o aceite dessa forma literal (afinal como aceitar o livre-arbítrio, na íntegra, depois de Freud?).
Mas então por que os anjos interferiram para evitar um suplício maior? Uma resposta que tenho dado a todos que me questionam desde a publicação do meu livro Falando com os Anjos, é: é preciso criar uma via de comunicação com esses seres. A primeira ponte desse caminho é a aceitação de sua existência e acusar a sua presença na nossa vida. Além do fato espiritual propriamente dito, você estará criando uma fôrma semântica que dará sentido a uma série de eventos, que de outra forma passariam despercebidos, seriam consignados à sorte, ao acaso ou iriam parar na conta genérica de Deus.
Ego em retirada e entrega
Assim acredito que ao longo da minha curta vida antes da prisão, eu já havia criado alguns atalhos até eles, e minha espiritualidade já se manifestava intensamente. Mas também acredito que os anjos precisam de espaço para agir, precisam que deixemos para eles a tarefa impossível, abandonemos os esforços do ego, que são sempre vãos. O peixe quando é pego pela rede só se safa se não entrar em pânico, se não insistir em sair se debatendo. Quando soube que os torturadores iriam chamar o meu contato na organização, abandonei os esforços, larguei mão de continuar a controlar a situação. Praticamente disse: “Estou tirando o meu ego de campo, agora é com vocês”.
Com o tempo a gente deve ir aprendendo a conhecer os limites, até onde podemos ir caminhando pelas pernas do nosso ego, e quando precisamos deixar as mãos do Imponderável nos levar sobre as águas revoltas. Os anjos precisam de espaço para trabalhar, mas não querem, não podem ocupar todo o espaço da condução de nossas vidas. Saber até onde caminhar entre as próprias responsabilidades como ser humano e deixar a direção para um motorista mais habilitado ao chegar no limite pessoal é a verdadeira inteligência.
Em última instância somos nós os responsáveis, até pela correta convocação dos anjos que irão nos auxiliar e na compreensão dessa intervenção. Por fim, saber agradecer. Ser grato é a chave que fecha essa equação espiritual. Abrimos reconhecendo a sua existência e a presença ao nosso lado. No meio do caminho os invocamos e abrimos espaço para trabalharem. No fim agradecemos, mesmo que o resultado não tenha sido exatamente aquele que esperávamos. Pode parecer que é pedir muito para as mentes mais racionais, mais objetivas, e é mesmo. Mas o contrário é a mais seca e arrogante solidão.
[1] Tortura onde a vítima tem os pulsos amarrados em volta das pernas flexionadas e é pendurada numa trave elevada. Em geral o sujeito fica nu e absolutamente imobilizado. Choques elétricos ou espancamento é aplicado em suas partes genitais, ou em qualquer outra parte do corpo.