Será que sou tóxico?

Será que sou tóxico? Este questionamento está equivocado. Na verdade, o que você quer saber é o quanto o outro está te prejudicado; entenda por quê

Chega ao meu Facebook um anúncio de um curso chamado: “Será que sou tóxico?”. O objetivo, como já sugere o título, é levar cada um dos participantes a avaliar o quanto seu estilo de vida pode prejudicar outras pessoas, especialmente aquelas com quem convivemos diariamente.

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Esse tipo de iniciativa representa uma preocupação crescente em nossas sociedades. A percepção de que podemos prejudicar outras pessoas torna-se cada vez mais aguda. É claro que essa percepção é reversível: ela também significa que os outros nos prejudicam do mesmo modo. Vista pelos dois lados, parece que temos nos tornado cada vez mais sensíveis. Isso parece realmente muito bom: que sejamos capazes de desenvolver uma percepção mais aguda de nossa condição de seres sociais e de quanto a vida de cada um interfere com os demais.

Porém, acredito que a expectativa que cerca essa percepção seja uma intensificação de uma sensibilidade equivocada com relação à violência e à presença do outro. Na verdade, essa sensibilidade tem se intensificado à medida em que nos aprofundamos cada vez mais em nós mesmos. Como concedemos uma atenção crescente a nossos próprios sentimentos, tendências e pensamentos, as relações com os demais tornam-se zonas de pressão.

Afinal, toda vida social exige compartilhamento: dividimos os espaços, estabelecemos relações, nos encontramos com estranhos, trabalhamos coletivamente, amamos etc. À medida que ampliamos a dimensão da individualidade e nos tornamos mais e mais atentos às nossas necessidades, também se amplia a área de contato com os demais. Isso pode parecer muito promissor, como disse acima. Porém, em função de nosso centramento crescente em nós mesmos, as zonas de contato que poderiam funcionar como novas oportunidades de conexão tornaram-se, na verdade, novas zonas de conflito.

Aquilo que poderia parecer promissor encontra-se comprometido porque, na verdade, o que nos mobiliza em direção aos outros, a ampliação das zonas de contato, não expressam disposições de empatia. Quero dizer com isso que nossas preocupações crescentes com as demais pessoas atualmente não decorrem de preocupações com aqueles com quem convivemos.

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Será que sou tóxico? O quanto os outros estão me prejudicando?  

As zonas de contato se converteram em zonas de fricção, porque estamos preocupados apenas com nós mesmos. Assim, quando nos perguntamos se somos tóxicos o que queremos saber é o quanto os outros estão nos prejudicando. Não existe nenhuma disposição de autocrítica nessas preocupações porque elas fazem se expandir as fronteiras de nossa própria individualidade para dimensões cada vez mais amplas. Ou seja, o que se amplia são as oportunidades de conflito, a violência.

A nossa sensibilidade crescente com relação à sociabilidade, a percepção de que nos encontramos em ambientes que podem se mostrar prejudiciais não dizem respeito à uma efetiva ampliação de nossa empatia. Elas não refletem preocupações genuínas com o bem-estar de outras pessoas. O que elas indicam é que nos tornamos mais e mais sensíveis com relação à interferência da vida de uma pessoa sobre nós. Isso porque cada um de nós se sente cada vez mais importante.

Não é nenhuma novidade afirmar que temos nos tornado mais e mais egocêntricos no ambiente ocidentalizado de nossas sociedades contemporâneas. Porém, isso tem se revestido de uma boa dose de hipocrisia quando indicamos que aquilo que nos move é o respeito pelas outras pessoas. Isso não corresponde ao que está ocorrendo. O que nos move verdadeiramente não é nenhum processo de autocrítica e de limitação gradual da percepção de nossa importância no mundo.

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Assim, se há algo que tem marcado de maneira decisiva nossas preocupações com o aspecto tóxico da convivência social é a hipocrisia de que nos rodeamos para tratar do assunto. Cada vez mais, o fato é que o inferno são os outros – como já disse um filósofo.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie