Consumo de Key (cetamina) pode causar convulsões?

Meu filho teve duas convulsões na semana passada… Descobrimos que ele está usando uma droga chamada Key. Essa droga pode causar convulsões?

A cetamina foi disponibilizada pela primeira vez para uso comercial no final da década de 60, tratando-se de um anestésico dissociativo de ação rápida. A cetamina é um derivado da fenciclidina (street name: pó de anjo) e foi inicialmente criada para reduzir os efeitos estupefacientes bem como o alto potencial de abuso da molécula de origem, a qual foi retirada do mercado em 1978. A cetamina é utilizada em procedimentos anestésicos pontuais, devido ao seu rápido início de ação e meia-vida relativamente curta.

Embora inicialmente usada como um anestésico, a cetamina tem mostrado implicações crescentes para outros usos terapêuticos. As dosagens e as vias de administração variam de acordo com os usos terapêuticos medicamente recomendados e cientificamente aprovados. A cetamina causa sedação dissociativa, definida como sedação sem perda completa de consciência, mas associada com um estado de imobilização, bem como amnésia.

Cetamina: efeitos

No entanto, como outros medicamentos, a cetamina não é isenta de efeitos colaterais. Os efeitos adversos incluem os seguintes:

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  1. Alucinações
  2. Distúrbios visuais, incluindo diplopia e nistagmo ocular
  3. Potencial para abuso e dependência química
  4. Agitação psicomotora à medida que o efeito da droga passa
  5. Tontura
  6. Náuseas e vômitos (Meaden & Barnes, 2019).

Os principais mecanismos de ação da cetamina podem ser aqui sumarizados:

  1. Atuação nos receptores de N-metil-d-aspartato (NMDA): A cetamina é uma mistura racêmica contendo partes iguais de (R+) e (S-) cetamina, com o enantiômero (S-) possuindo afinidade mais forte para o receptor NMDA. A cetamina bloqueia os receptores NMDA, pois é um bloqueador não competitivo, o que contribui para potentes propriedades anestésicas e analgésicas. Acredita-se também que a interação da cetamina com os receptores NMDA contribua para os efeitos antidepressivos.
  2. Atuação nos receptores opióides: Foi relatado que a interação entre a cetamina e os receptores opioides tipo mu é equivalente àquela entre a cetamina e os receptores NMDA. Esta interação pode produzir efeitos antidepressivos, através dos efeitos indiretos sobre as vias serotoninérgicas.
  3. Atuação nos Receptores Monoaminérgicos: A cetamina interage com os receptores monoaminérgicos. Esta interação aumenta o número de receptores de serotonina 5-HT1B, aumentando os níveis de dopamina no cérebro. Acredita-se também que a interação com receptores monoaminérgicos contribua para os efeitos antidepressivos mediados ou modulados pela cetamina.
  4. Atuação nos Receptores Muscarínicos: A cetamina interage com os receptores muscarínicos, e essa interação pode contribuir para os efeitos colaterais cognitivos descritos da cetamina.
  5. Atuação nos canais de cálcio voltagem-dependentes: A cetamina interage com canais de cálcio, resultando em efeitos analgésicos mediados ou modulados pela cetamina.
  6. Atuação nos canais de nucleotídeos cíclicos (HCN1): Os efeitos hipnóticos da cetamina parecem ser mediados principalmente pela inibição dos receptores NMDA e HCN1 (Shehata et al., 2024).

E quanto às crises convulsivas induzidas pela cetamina? Quando ocorrem? Trata-se de um efeito adverso comum?

O potencial da cetamina para induzir crises convulsivas não é correntemente claro. Alguns autores demonstram, ao contrário, que a cetamina tem propriedades anticonvulsivantes e neuro protetoras e que pode ser usada como um medicamento eficaz para o tratamento de estados epilépticos refratários (enquanto medicação de terceira linha) (Kurdi, Theerth, & Deva, 2014).

Por exemplo, estudos têm demonstrado que, durante quadros convulsivos arrastados, o número de receptores de ácido gama-aminobutírico (GABA)-A ativados na membrana pós-sináptica diminui gradualmente, enquanto o número de receptores GABA-A inativos aumenta. Isso causa uma redução significativa na eficácia de medicamentos antiepilépticos direcionados ao sistema GABAérgico, incluindo benzodiazepínicos e fenobarbital (Rosati, De Masi, & Guerrini, 2018). Em contraste, o número e as atividades dos receptores N-metil-D-aspartato (NDMA) aumentam com o tempo. Posteriormente, um medicamento como a cetamina, que é um antagonista não competitivo do receptor NDMA, pode desempenhar um papel no tratamento do estado de mal epiléptico.

Outrossim, alguns autores chegaram já a afirmar que não existem evidências de que a cetamina possa precipitar crises convulsivas, mesmo em pacientes com histórico de epilepsia e EEG anormal (Corssen, Little, & Tavakoli, 1974). Só que em Medicina, “jamais dizemos NUNCA, além de uma dúvida razoável”.

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É verdade que a cetamina possui uma ampla gama de ações farmacológicas positivas, incluindo:

  1. Estimulação do sistema cardiovascular
  2. Manutenção do impulso respiratório
  3. Broncodilatação
  4. Sedação
  5. Analgesia

Alguns autores negam a associação entre cetamina e convulsões em pacientes saudáveis ​​ou mesmo naqueles portadores de alguma forma de epilepsia; outros ainda reivindicam propriedades anticonvulsivantes e neuroprotetoras (Rosati et al., 2018). 

Entretanto, outros autores já afirmaram que a cetamina causou convulsões que variam desde atividade epileptiforme em indivíduos saudáveis até convulsões motoras generalizadas em pacientes com epilepsia. Evidências conflitantes também foram observadas em vários estudos com animais.

Nos gêneros textuais médicos, também existem registros sobre os efeitos pró-convulsivantes da cetamina. Uma causa possível para tal efeito incomum é que a cetamina existe como moléculas assimétricas chamadas enantiômeros (S e R). Uma pequena variação na estrutura do fármaco poderia influenciar a sua afinidade por um determinado sítio de ligação aos receptores e produzir efeitos diferentes para cada enantiômero (Modica, Tempelhoff, & White, 1990a, 1990b). Por exemplo, o isômero S da cetamina é mais potente e suprime a atividade epiléptica na amplitude e frequência do eletroencefalograma (EEG), enquanto o isômero R é menos potente e incapaz de suprimir o grau semelhante de amplitude e frequência do EEG (Kim et al., 2021).

Infelizmente, atividades convulsivas e outras sequelas neurológicas podem sim ser observadas na toxicidade da cetamina por overdose. A toxicidade da cetamina é mais comumente observada quando ingerida recreativamente, e não na prática clínica. Durante a ingestão recreativa, a cetamina pode estar associada com outros contaminantes/adulterantes e pode não ser uma droga pura; portanto, está longe de estar claro se as crises convulsivas ocorridas após o uso da cetamina são devidas à própria cetamina, à overdose por cetamina, ou mesmo aos adulterantes encontrados na mistura de uma formulação de rua. Além disso, o que sabemos sobre a toxicidade e overdose de cetamina vem da literatura animal e ocorre em doses significativamente mais altas do que aquelas administradas clinicamente.

Uma análise liderada pela NYU Grossman School of Medicine e pelo National Drug Early Warning System (NDEWS) da Universidade da Flórida encontrou um aumento de 349% nas apreensões de cetamina ilícita entre 2017 e 2022 (Palamar, Wilkinson, Carr, Rutherford, & Cottler, 2023). As descobertas desse estudo sugerem que o uso recreativo crescente da cetamina pode aumentar a probabilidade de que as pessoas que usam para tais fins ou que usam inadvertidamente possam encontrar uma versão adulterada e potencialmente prejudicial da droga.

Este aumento dramático nas apreensões de cetamina pelas autoridades policiais seguramente é um indicativo do aumento do uso não médico e recreativo. Ao contrário da cetamina legalizada e utilizada em hospitais/clínicas especializadas, a maior parte da cetamina obtida nas ruas e ilegalmente não é de qualidade farmacêutica e é vendida na forma de pó, o que pode aumentar o risco de conter outras substâncias/adulterantes, como a cocaína e várias outras drogas. Os traficantes misturam as drogas com a finalidade de vendê-las por um alto preço, como se fossem “originais”. Misturando as drogas, a substância almejada é diminuída em quantidade e outras mais baratas, e talvez mais perniciosas, acrescentadas e combinadas.

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Nenhuma droga é boa ou má por si só’

Como usualmente dizemos em relação às drogas, “nenhuma droga é boa ou má por si só”. Depende se é usada corretamente ou de forma abusiva, com ou sem indicação clínica especializada, supervisionada ou não, com ou sem adesão às contraindicações…

O abuso de cetamina tem sido um flagelo para todos nós. O número de pessoas sofrendo da Síndrome de Dependência de Cetamina tem aumentado vertiginosamente, o que é facilmente vislumbrado no dia a dia das clínicas especializadas. No entanto, apesar do aumento evidente dos problemas relacionados com o mau uso desta droga, que não é barata, a adesão ao manejo terapêutico tem sido insuficiente.

Referências:

Corssen, G., Little, S. C., & Tavakoli, M. (1974). Ketamine and epilepsy. Anesth Analg, 53(2), 319-335.

Kim, J. H., Lee, C. K., Yu, S. H., Min, B. D., Chung, C. E., & Kim, D. C. (2021). Ketamine-induced generalized convulsive seizure during procedural sedation. Arch Craniofac Surg, 22(2), 119-121.

Kurdi, M. S., Theerth, K. A., & Deva, R. S. (2014). Ketamine: Current applications in anesthesia, pain, and critical care. Anesth Essays Res, 8(3), 283-290.

Meaden, C. W., & Barnes, S. (2019). Ketamine Implicated in New Onset Seizure. Clin Pract Cases Emerg Med, 3(4), 401-404.

Modica, P. A., Tempelhoff, R., & White, P. F. (1990a). Pro- and anticonvulsant effects of anesthetics (Part I). Anesth Analg, 70(3), 303-315.

Modica, P. A., Tempelhoff, R., & White, P. F. (1990b). Pro- and anticonvulsant effects of anesthetics (Part II). Anesth Analg, 70(4), 433-444.

Palamar, J. J., Wilkinson, S. T., Carr, T. H., Rutherford, C., & Cottler, L. B. (2023). Trends in Illicit Ketamine Seizures in the US From 2017 to 2022. JAMA Psychiatry, 80(7), 750-751.

Rosati, A., De Masi, S., & Guerrini, R. (2018). Ketamine for Refractory Status Epilepticus: A Systematic Review. CNS Drugs, 32(11), 997-1009.

Shehata, I. M., Kohaf, N. A., ElSayed, M. W., Latifi, K., Aboutaleb, A. M., & Kaye, A. D. (2024). Ketamine: Pro or antiepileptic agent? A systematic review. Heliyon, 10(2), e24433.

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.