por Aurea Afonso Caetano
Apesar de vivermos em um mundo cada vez mais tecnológico, em uma sociedade multimídia, com recursos multimídia como estes que usamos agora, é ainda através de palavras que continuamos a nos comunicar. A capacidade de comunicação verbal complexa nos diferencia de todas as outras espécies.
Através da utilização de nossa possibilidade de expressão verbal podemos dar significado a nossas vivências, podemos trocar, dividir experiências, ampliar a percepção que temos do mundo, crescer, para dentro e para fora.
Um homem se faz através de palavras. Nossa cultura está estruturada na comunicação verbal. Pensamentos e emoções são decodificados, transformados em códigos verbais para serem melhor compreendidos, para serem elaborados. A palavra é germe, foi a palavra soprada no ouvido de Maria que deu origem ao mito que fundamenta a civilização cristã. O Espírito transformado em palavra fecundando a Virgem que dá a luz ao Filho do Pai. A palavra criativa, a palavra que provoca a germinação.
Como diz o psicanalista e escritor Rubens Alves "Palavras, coisas etéreas e fracas, meros sons. No entanto é delas que nosso corpo é feito. O corpo é a carne e o sangue metamorfoseados pelas palavras que aí moram… O corpo é a Palavra que se fez carne."(Alves, 2000, pg. 66).
E o que é a literatura senão a palavra escrita? A palavra organizada, elaborada de forma a expressar um encadeamento de ideias, sensações, vivências, de forma a contar uma história que nos comova, que nos toque. E não é esse o papel da arte em geral: a expressão maior da humanidade ou do que há de mais profundamente humano em nós? A possibilidade de comover, iluminar, encantar e com esse encantamento abrir clareiras, lançar luz, abrir novos espaços, mobilizar novas possibilidades, novas formas de ver o mundo.
São os momentos de "encantamento", iluminação ou comoção que vão quebrar ou modificar "a ordem natural das coisas". São também os momentos de crise, que não deixam de ser também encantamentos, que vão trazer esta possibilidade. É nesse momento que entra a capacidade humana de elaboração simbólica. A possibilidade de, a partir da ruptura, criar novos sentidos, re-arranjar antigas vivências dando a elas um novo significado, re-criar aspectos de nossa psique (mente). Trabalhando, lidando com a energia liberada por essa quebra ou ruptura, transformando esse momento em um novo estado de coisas vamos lentamente elaborando a mudança, abrindo espaço para o novo, articulando essa transformação. E embora esse processo possa ser vivido na relação com o outro, num contexto de dualidade, é, no entanto, extremamente solitário. Diz respeito a cada um de nós em sua mais profunda individualidade, em seu caminho mais verdadeiro, mais único.
E então, como diz Edinger, "A linguagem, a arte, o drama e a aprendizagem proporcionam o espelho de Atena à humanidade, permitindo que a psique emerja e se desenvolva". (Edinger, 1993,pg. 37).
Para mim, a literatura em especial traz a possibilidade de comover, encantar, lançar luz, abrir clareiras e espaços me obrigando de alguma forma a dar conta de conteúdos que muitas vezes não surgiriam de outra forma.
Uma boa obra literária é um tradutor de conteúdos inconscientes, de vivências, desejos, medos e sofrimentos que estão de alguma forma à espera de uma nomeação, uma explicitação. É a palavra escrita como agente transformador; é a possibilidade de ampliar a capacidade de conhecer a mim mesmo e ao outro. Oportunidade, portanto, de crescer!
Referências bibliográficas:
Alves, R. (2000). A Alegria de Ensinar. Campinas, SP: Ed. Papirus.
Edinger, E. F. (1993). A Criação da Consciência. São Paulo: Cultrix.