por Pedro Tornaghi
Passadores de bastão: há aqueles que são degraus e aqueles que são patamares
Em uma corrida de revezamento, o corredor recebe o bastão e o conduz, tal e qual o recebeu, para o próximo corredor. Ele é guardião do cajado mas, não o assina, apenas o passa. Na linhagem espiritual é um pouco diferente ou, pelo menos, deveria ser.
Uma confraria espiritual, de certa maneira, é como uma dessas corridas, onde o líder recebe o cetro do conhecimento de sua “linhagem espiritual” e deve conduzi-lo com maestria e total domínio, até o momento de passá-lo adiante, ao próximo líder. Com os ensinamentos que herda, deve nortear e orientar os que navegam em seu mesmo barco. Mas, cedo ou tarde, chegará o dia de passar o timão e o leme do barco a um novo comandante. E, junto, o plano de viagem.
Na caminhada espiritual individual, da mesma maneira, herdamos a sabedoria e os caminhos trilhados por aqueles que neles evoluíram antes de nós. Esses nos passam também um mapeamento do que supostamente encontraremos à frente.
O mapa, porém, não é suficiente para que cheguemos ao nosso destino, é preciso que encontremos e usemos uma certa “bússola interna”. Não podemos seguir à risca a senda indicada pelos que, generosamente, nos legaram ensinamentos, precisamos decidir, quando aplicá-los ou não, à nossa maneira e conforme cada nova situação se apresente.
Heranças espirituais são importantes e podem ser extremamente úteis para nosso crescimento; mas, se junto à riqueza da instrução que nos é dada, nos é impingido um manual com regras fixas de como utilizá-la e, até mesmo, restringindo a finalidade com que devemos seguir nosso caminho, em vez do cetro nos levar à liberdade, nos levará ao atrofiamento da substância espiritual. Se aqueles que nos deram o saber, tentam realizar os propósitos que tinham para suas vidas através das nossas, e se permitimos que isso aconteça, em vez herdarmos uma sabedoria, estaremos herdando um carma.
E, infelizmente, é o que comumente acontece. Mas nem sempre.
Há dois tipos de passadores de bastão na escalada espiritual; há aqueles que se comportam como degraus e aqueles que se tornam patamares. De degraus, estou chamando aqueles que passam adiante o que receberam tal e qual receberam, esses são os que se autodenominam “guardiões da tradição”, eles leem um livro sagrado e repetem suas palavras como cães fiéis, preocupados em não mudar um vírgula para não distorcer, são preocupados em registrar a história de maneira fidedigna.
Os que aqui chamo de patamares, são aqueles que acolhem os ensinamentos que recebem com tal honestidade e profundidade que se transformam radicalmente por dentro nas verdades que aqueles aprendizados apontam, se tornam novas pessoas, veem revelarem-se frente a seus olhos os segredos do mundo interno e inauguram uma nova era, um novo viver em si. Esses, ao se transformarem e bancarem a autometamorfose, possibilitam o “novo mundo” que as escrituras propunham. Esses, quando passam o bastão, o fazem depois de o terem trabalhado, esculpido, feito-o à semelhança daquilo que seus olhos veem. Esses são Mestres. Esses, se repetirem as palavras das escrituras, o farão com um frescor tal, que todos reconhecerão originalidade em sua palavras, todos as perceberão como entes vivos e pulsantes, elas ressoarão em seus corações.
Ambos têm sua importância, tanto os discípulos “degraus” quanto os “patamares”, mas há muito mais degraus do que patamares na escada e é conveniente que os degraus não cobrem dos patamares que esses encurtem sua área de compreensão para se assemelharem a degraus, é importante que quem sobe a escada com pressa, não reclame de um degrau mais longo que quebra o ritmo de sua marcha. Está certo que a maioria se comporte como degraus, mas é necessário que alguns sejam patamares. É preciso aceitá-los e valorizá-los.
É no patamar que se para para refletir, são os patamares que permitem o descanso, são os patamares quem permitem as curvas, as mudanças de rumo com menor trauma e perigo. São os discípulos patamares que inauguram os novos paradigmas que proverão de novos sentidos a escada, que possibilitarão levar cargas maiores ao andar mais alto ou ao mais profundo.
O discípulo degrau, aprende um exercício espiritual ou uma meditação de seu mestre e o repete tal e qual aprendeu. Mas ele, de maneira geral, não chega a experimentar de fato, o nível de profundidade, de contato consigo mesmo e de lucidez própria espiritual que seu mestre propunha. Ele, em última análise, passa adiante o que ele mesmo não entendeu muito bem. O discípulo patamar, ao viver integralmente o estado de beatitude proposto pelo mestre, pode criar seus próprios exercícios e apresentá-los aos próximos. Esse, quando entregar o bastão, entregará um bastão personalizado, com uma nova fragrância, capaz de acordar e estimular os sentidos dos novos caminhantes e corredores que virão. Esses, colocam o sal de seu suor no bastão. Esses, são capazes de transformar a oportunidade em crescimento e realização. Esses, somos todos nós, quando nos dispomos a sê-lo.