por Roberto Goldkorn
Assisti agora há pouco um programa de TV aqui em Portugal, onde alguém é escolhido para ter a sua casa reformada em frente às câmeras. O que me chamou a atenção foi o depoimento da senhora selecionada pela produção do programa. Uma mulher de seus sessenta anos, com um perfil bastante conservador, deu um depoimento comovente cuja transcrição resume-se em algumas palavras simples e poderosas: “Eu quero mudar. Por favor me ajudem”. Observando-se a casinha simples, dessa viúva cujos filhos estavam saindo de casa para seus voos solo, podia-se notar os traços de seu conservadorismo e também de sua solidão por toda parte.
Nem todo conservador é também solitário, mas quando esses dois fatores caminham juntos temos um roteiro de ferro difícil de mudar e cujo destino final já e sabido. Mas tenho a minha estatística pessoal e bem primária, onde percebo que a casa dos conservadores contribui para a sua solidão, e eles mesmo assim as mantêm intocável (por isso são conservadores). A maioria diz: “Eu quero mudar, não suporto mais a solidão, mas não mexa na minha casa, não toque nas minhas coisas, deixe tudo do jeito que está. Levei muito tempo para tecer essa teia da qual sou o primeiro prisioneiro.”
Medicina da habitação
Quando tenho de aplicar a medicina da habitação na casa de um ou uma conservadora solitária sei que estou diante de um chance única de mudar um ambiente e com isso dar início a um processo de mudança de status social e quase sempre afetivo. Mesmo tendo explicado de forma convincente os efeitos estagnadores de determinados ambientes na vida de seus proprietários, mesmo vendo que eles balançam a cabeça afrmativamente diante das minhas explicações o mais didáticas possíveis, eles resistem. Quando começamos a passar das explanações conceituais para a prática, começam também os problemas. Ao pedir para que se livrem dos itens que “morreram”, sinto que toco no nervo exposto. Pessoas conservadoras conservam. Mesmo aquilo que não serve para nada, que é “lixo”, que pode ser venenoso para um ambiente que se quer saudável. Muitas mordem os lábios, torcem as mãos, balançam a cabeça negativamente, e tentam argumentar em favor dos jornais velhos, ou das roupas que estão sem uso há dez anos, ou do aparelho de TV que está “guardado” num canto sem funcionar há cinco anos.
Quando começo a falar das cores, então vem logo a recomendação: “Estou disposta a mudar tudo só não mexa na minha parede bege.” Bege! A cor preferida dos conservadores, dos que abominam as mudanças. Os conservadores solitários sonham com a mudança, mas quando chega a hora H se arrepiam com a mera possibilidade de mexer no seu esquema de vida, representado pela sua casa congelada no tempo e no espaço. “Esse móvel pertenceu a minha avó, aquela cadeira era a favorita do meu marido quando era vivo, aquele quadro foi pintado pela minha sobrinha que está inernada há anos num hospital psiquiátrico.” Essas pessoas lamentam a sorte, choram à noite molhando seus travesseiros, acendem velas nas igrejas para seus santos terem compaixão delas e tirá-las do deserto da solidão, mas não percebem que elas mesmas se recusam a sair. A porta da cela, está aberta, mas elas simplesmente não veem, e suspiram pela liberdade que sistematicamente sabotam.
Recentemente, atendi uma mulher pela segunda vez. Ela tinha estado comigo um ano antes e eu nem me lembrava, o que é extremamente raro. Ao lhe perguntar sobre as medidas que lhe sugeri que adotasse na nossa primeira consulta, ela confessou que nada fez. Perguntei-lhe então o que esperava de novo nessa nova consulta. Ela deu um suspiro profundo e soltou um honesto: “Eu não sei.” Fiquei por alguns segundos observando aquele ser humano sem vida, sem tesão, sem forças para dar o primeiro passo, sem coragem. Não consegui ficar bravo com ela, como às vezes fico com essas pessoas que desperdiçam o meu tempo. Tive um surto de compaixão, e se ela tivesse começado a chorar iria sentar ao seu lado e chorar também, mas minha cliente não teve forças para chorar.
Os conservadores solitários conservam com esmero sua solidão, seu estilo de vida, sua atitude (ou ausência dela), sua mobília, seus resíduos, nada descartam, nem mesmo o vazio de suas vidas. Eles não compreendem a relação entre tudo aquilo que preservam e a manutenção de seu status existencial. Não aceitam o vermelho das paixões, mas mantêm o bege dos velhos rancores. Recusam a retirar as memórias de tempos felizes e mortos, para abrir espaço para os riscos de novos tempos, e quem sabe o tilintar dos sinos do amor e da alegria.
Quando a senhora disse que podiam botar a sua casa abaixo, pois estava disposta a mudar a vida, percebi a mensagem. Ela sentiu a água da solidão subir-lhe pelas pernas. Teve coragem, teve sensatez, vai mudar uma peça no seu tabuleiro de xadrez e as consequências serão imprevisíveis, exceto por uma: Vai abandonar o caixão, e o roteiro que usualmente fazem os caixões quando estão ocupados. Para ela parabéns e um sopro de esperança e vida.