por Samanta Obadia
“Agradeço à vida por nada ter sido fácil para mim”. E a vida não é fácil para a maioria de nós, mas as dificuldades nos fazem resilientes, quando aprendemos com elas. A resiliência é a arte de navegar pelas correntezas, pois recorremos aos recursos internos impregnados em nossa memória e lutamos para não morrermos pelo curso natural dos traumas” Sigmund Freud (1856-1939)
Estou lançando o meu terceiro livro, “Mengele me condenou a viver”, onde conto as vivências e sequelas do Holocausto de Aleksander Henryk Laks.
Escrever este livro foi um exercício complexo porque demandou uma postura muito além da profissional. Primeiro porque foi um convite que um amigo, Aleksander, me fez, não só porque conhece o meu trabalho como escritora, mas porque nos reconhecemos como gente que se importa com gente, como ressaltou o rabino Nilton Bonder, na apresentação do livro.
Nossa intenção principal é a de registrar com fatos, fotos e documentos este período tão triste pela qual a humanidade passou. A Shoah foi assustadora. Não só pelos milhões de mortos, mas pela maldade com que isso foi pensado e feito. Como disse Bauman, “a coisa mais cruel da crueldade é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E a mais dura das lutas é continuar humano em condições desumanas”. E eu ressalto que pior ainda é saber que existem pessoas que querem negar a existência desse horror, escondendo os fatos das próximas gerações.
Hoje nós temos a oportunidade de estar em contato direto com alguns dos sobreviventes, o que não será possível para os jovens daqui a poucas décadas. Por isso, ao construir este livro, sob a forma de diálogo, procurei resgatar também a comunicação das experiências, de gente para gente, para que o leitor sinta-se junto ao que é transmitido.
Usando as palavras de Walter Benjamim: a transmissão da experiência está na arte de narrar, e essa está definhando com a modernidade. Sempre gostei de contar histórias, mas gosto ainda mais de ouvi-las. Talvez faça jus ao meu primeiro nome, Samanta, que significa ‘aquela que ouve’. Dom útil na clínica psicanalítica, no magistério e na vida. Ouvindo Aleksander, busquei escrever não somente as suas palavras, mas seu olhar, seu respirar e seu silêncio.
Neste diálogo, eu e Aleksander trocamos de lugares muitas vezes, e isso é característica de gente que partilha experiência, que chora e ri junto, que conta piada quando o outro está triste e que acaricia quando não há o que dizer.
Ao ser liberto no final da guerra ele não se deparou com um ‘mar de rosas’, como muitos filmes mostram. Foi um novo momento repleto de dificuldades, uma realidade que apontava para o recomeço do nada. Sem identidade, sem família, sem pátria, sem bens e sem direção. Entender as vivências e as sequelas que o Holocausto deixou em Aleksander faz parte dessa história que não podemos esquecer.
A vida dos sobreviventes não foi nada fácil. Isto é fato. E nem imaginamos o quanto. Mas a forma com a qual superaram essas dores me faz lembrar Sigmund Freud, em seus últimos anos, quando esse disse: “Agradeço à vida por nada ter sido fácil para mim”. E a vida não é fácil para a maioria de nós, mas as dificuldades nos fazem resilientes, quando aprendemos com elas. A resiliência é a arte de navegar pelas correntezas, pois recorremos aos recursos internos impregnados em nossa memória e lutamos para não morrermos pelo curso natural dos traumas. Aprendi com Aleksander e com os outros sobreviventes que nos contam as suas lembranças, que o ser humano tem uma enorme capacidade de superação, e que com o outro e pelo outro, somos capazes de muitos milagres.
Doía muito escrever e averiguar determinados acontecimentos para tratar da veracidade dos fatos ocorridos. Em alguns momentos, eu me embolava com a história e pensava: como isso aconteceu? Mas eu precisava seguir e lembrava meu compromisso com Aleksander, e com os jovens que saem de seu depoimento com os olhos cheios de lágrimas e o coração cheio de amor.
A sabedoria de quem viveu a história deve ser transmitida ao outro como na Ética do Sinai.
Há o momento em que Moisés recebe a Torá do Monte Sinai. Ele a aceita, a experimenta e a torna parte de sua consciência. Por isso, ele foi capaz de transmiti-la e ensiná-la aos outros. Porque só aquilo que foi absorvido pode ser transmitido.
Moisés recebeu a Torá do Monte Sinai e transmitiu-a a Josué. Transmitir alguma coisa é bem diferente de dar. Algo transmitido tem o caráter de algo entregue em custódia. É seu sob certas condições, mediante certas obrigações e não pode sofrer alterações nem mudanças. O que lhe foi entregue é seu enquanto você viver, mas depois, deverá ser transferido a outros. É com esse sentido de ‘custódia’ que Moisés transmitiu a Torá a Josué. E é com este mesmo sentido, que o faço, através de minhas palavras, com a experiência de Aleksander. Que eu seja digna de transmitir esta experiência única de algo tão valioso que me foi entregue em custódia.