por Monica Aiub
John Searle, em Mind: A brief introduction (2004), ao apresentar a intencionalidade como um importante problema da Filosofia da Mente, distingue entre a realidade que depende da existência de um observador e a realidade que independe do observador para existir. Elementos como gravidade, fotossíntese, massa, força, átomos são exemplos de coisas que existem independentemente do observador, a realidade natural, segundo ele. Em contrapartida, propriedade, dinheiro, governo são exemplos de coisas que dependem de nós para existir, a realidade social, cultural, existencial. O problema que ele levanta se dá quando consideramos coisas que dependem de um observador como se fossem coisas que existem independentemente dele, como, por exemplo, o dinheiro.
O que faz com que um pedaço de papel tenha valor para trocarmos por objetos e serviços senão o fato de observadores terem atribuído tal valor ao papel? Contudo, esquecemos que o dinheiro foi criado como instrumento para facilitar as trocas, e começamos a valorizá-lo em si mesmo, muitas vezes abrindo mão de nossa liberdade, de nossas próprias vidas, matando ou morrendo, em função de “um pedaço de papel”.
Tornando esse processo ainda mais complexo, muitas vezes atribuímos essa “realidade”, com existência independente de nós, a ideias, a juízos emitidos por um observador. Contudo, o peso que tais ideias ou palavras exercem sobre nossas ações, sobre nossos estados emocionais, sobre a construção de nossas vidas, muitas vezes, é imenso.
Mais complexidade ainda encontramos quando atribuímos uma realidade ao que nós, como observadores, supomos que outros observadores pensam. Ficou confuso? Vamos a um exemplo: considere uma pessoa que pensa que as outras terão preconceito por ela ter um diagnóstico de esquizofrenia e, por esse motivo, priva-se do convívio com essas outras pessoas, mas sofre muitíssimo com a discriminação; considere também uma pessoa que pensa que será rejeitada ao declarar seu amor, e por isso tenta escondê-lo, para que a pessoa amada jamais venha a suspeitar de seu sentimento e, consequentemente, não a rejeite; ou um aluno que pensa que será considerado idiota se perguntar sobre sua dúvida, então finge ter compreendido o assunto para que os outros não desconfiem que ele não entendeu plenamente o estudado.
Poderíamos listar inúmeros exemplos de situações dessa natureza. Quantas vezes, em nossas vidas, já fizemos algo do gênero? Privamo-nos de emitir nossas opiniões, de expor nossos sentimentos, de perguntar sobre o que nos inquieta, com medo do preconceito que pensamos que o outro possui? Como sabemos que possui? Temos acesso aos pensamentos dos outros? E ainda que tivéssemos, nossas declarações, colocações, exposições poderiam modificar tais pensamentos, ou eles são estáticos, imutáveis? Quantas vezes você já mudou de opinião porque alguém lhe expôs algo de modo que jamais havia considerado? Quantas vezes você foi surpreendido porque alguém respondeu de maneira totalmente diferente a que esperava?
Impacto dos preconceitos
Partindo desses questionamentos, você já avaliou o impacto dos preconceitos – tanto os seus, quanto os de outras pessoas – na vida? Quantas das suas decisões foram guiadas por seus preconceitos? Quantas o foram por preconceitos de outros? E quantas, ainda, por seus preconceitos acerca dos preconceitos dos outros?
Preconceito. Pré-conceito: conceito anterior à experiência, à vivência. Atribuímos um conceito a algo, alguém ou alguma situação, e o tomamos como se fosse “a realidade”, independentemente de termos sido nós a atribuí-lo. Fazemos como Nietzsche descreve: inventamos a verdade e, no instante seguinte, esquecemos que fomos nós que a inventamos.
Ao tomar nossos conceitos prévios como realidades existentes, independentemente do significado atribuído por um observador, esquecemos que somos responsáveis pela existência de tais conceitos, pela atribuição de significados a certos eventos, e passamos a considerá-los como “a realidade”. Sendo o real determinante para nossos posicionamentos e, consequentemente, para definir novos eventos, podemos afirmar que “constituímos” o real, que construímos o mundo, que provocamos os acontecimentos. As ideias se materializam, os conceitos prévios tornam-se realidades subseqüentes, a vida passa a ser determinada por tais conceitos, capazes de movimentar o mundo.
Como é possível pensar em diferentes conceitos prévios, visto que eles não necessitam de fundamentação, de pertinência às questões propostas, tudo é possível, tudo pode vir a ser. E como tudo é possível, não temos uma possibilidade. Temos, apenas, todas as possibilidades para que escolhamos a que melhor nos convier.
Isso amplia nossa responsabilidade diante do mundo, da vida. Não se trata de uma determinação exterior a nós, mas de nós mesmos determinarmos os caminhos que trilharemos em nossa existência. Não se trata de mágica: materializar o pensamento por ter pensado. Trata-se de assumir posicionamentos devido a uma forma de pensar. Trata-se de agir de maneira a reafirmar aquilo que pensamos e, consequentemente, construir o real tal como as ideias que habitam nosso intelecto.
Quais as ideias que habitam seu intelecto? De que maneira elas interferem na forma como você se relaciona? Elas interferem em suas decisões? Elas lhe aproximam ou lhe afastam do que busca como forma de vida? São coerentes com seus desejos?
Nem sempre damos atenção suficiente a nossas formas de pensar, aos conteúdos das ideias que freqüentam nossos pensamentos. Pensamos, concluímos, agimos… Observamos as bases de nossos pensamentos? O que nos faz pensar como pensamos e pensar o que pensamos? Há outras formas possíveis para o pensar?
Cuidado com o que você pensa
No mesmo livro, mas não somente nele, Searle nos questiona sobre as maneiras pelas quais um pensamento é capaz de causar um movimento no mundo físico, como por exemplo, movimentarmos nosso braço. Decididamente, muito de nossas ações só acontece porque pensamos algo, desejamos algo, acreditamos em algo, tememos algo… ou seja, há um estado subjetivo que provoca um tipo de movimentação no mundo. Se isso é fato – e é difícil, empiricamente, duvidar desse fato –, então a interferência do que pensamos sobre o que vivemos é muito maior do que habitualmente imaginamos. Então o dito popular “cuidado com o que você pensa” possui um sentido muito mais intenso.
Repito: não estou afirmando que pensar é suficiente para constituir o mundo tal qual nosso pensamento. Estou afirmando que nossos pensamentos interferem, e às vezes determinam, nossas ações, nossos posicionamentos, e que o mundo em que vivemos se constitui a partir da interferência dessas nossas ações sobre ele. Se penso que o outro tem preconceito, para não sofrer a discriminação, segrego-me antes, escondo-me, sofro antecipadamente.
É interessante observar que, muitas vezes, o juízo prévio que formulamos acerca dos pensamentos alheios não é condizente com o que o outro pensa de fato. Quando nos deparamos com o pensamento do outro, e ele não é condizente com o quadro que criamos, isso pode ser uma decepção, mas também pode ser a origem de um grande alívio existencial.
De certa forma, nos deparamos constantemente com a observação de estarmos baseando nossas ações em nossos juízos prévios – pré-juízos. Tal constatação pode ser motivo de modificação de nossos posicionamentos, ao contrapormos nossos pensamentos a testes comprobatórios, ou a dados da “realidade” que os confrontem. Isso pode ser de grande importância para orientarmos nossos planos de ação, para nos situarmos acerca das condições para efetivarmos nossos projetos.
A mesma constatação pode, todavia, ser motivo de reafirmação de nossos posicionamentos. São pré-juízos sim, não há como verificar suas bases, mas manter a crença neles mantém o sentido da existência, permite a construção de um caminho possível, ainda que o outro, de fato, não pense como eu acho que ele pensa.
Por um lado, nossos pensamentos movimentam-se o tempo inteiro. Se o outro não pensava assim, pode passar a pensar. Se ele pensava, poderá deixar de pensar. O quanto nossos posicionamentos interferem na construção do pensamento do outro?
Se você está me acompanhando até aqui, talvez tenha percebido que percorremos alguns círculos. Pensamentos que geram ações, que geram pensamentos, que geram ações. Ações que geram o mundo, que gera ações. O pensamento do outro que constitui o meu pensamento, que constitui o pensamento do outro. Quais os limites, as linhas divisórias entre esses elementos?
Penso não ser possível estabelecer esses limites, essas linhas divisórias. Não há fronteiras, territórios específicos do pensar, do agir, do eu, do outro.
Infinitas possibilidades
Desterritorialização, como apontaram Deleuze e Guattari, talvez seja uma abordagem mais condizente com o que vivenciamos. A constatação da fluidez de nosso pensar e, conseqüentemente, de nossas ações, daquilo que somos, talvez permita uma melhor compreensão de como viver em um mundo onde não há uma possibilidade, mas todas as possibilidades. Diante de todas as possibilidades, qual ou quais você escolhe para constituir seus pensamentos, suas ações, sua existência?
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. 5 vol. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
SEARLE, J. Mind: A brief introduction. Oxford: Oxford University Press, 2004.