por Roberto Goldkorn
Acho que já relatei essa fabuleta aqui algumas vezes, mas cada uma em um contexto. Portanto aqui vai outra vez em outro contexto.
Um velho sábio morava próximo a uma aldeia diante de tudo. O Zé, como era conhecido, meditava, orava e jejuava. Um dia um anjo surgiu em sua frente e o alertou: Mestre Zé, daqui há alguns dias, o rio será envenenado, portanto não beba de sua água, todos que beberem ficarão loucos, pirados, maluquinhos, insanos e completamente doidos.
Dito e feito, o sábio caminhava horas para buscar e trazer água fresca de um poço distante. Os aldeões viam aquela peregrinação com estranheza. Afinal de contas, com um rio de água boas passando ao lado, por que o sábio iria tão longe para matar a sede?
Em poucos dias, porém, os habitantes da aldeia iam ficando loucos, pirados, maluquinhos, insanos e completamente doidos. E nessa condição começaram a perceber o comportamento do Zé como estranho, ameaçador. Quanto mais loucos ficavam, mais o velho inofensivo ia parecendo uma ameaça. Um dia acordaram e resolveram que não podiam conviver com alguém tão perigoso assim e foram até à casa dele, aquele bando de insanos alucinados, e ainda por cima doidos, para eliminar a ameaça. Quando viu que seria morto pelos aldeões muito loucos o velho teve um lampejo e disse: Calma aí gente boa, eu sei que estou doente, mas sei que posso me curar e ficar legal igual a vocês. O líder e mais louco de todos, teve também um lampejo e perguntou: "Como vai fazer isso, seu louco? " Seguiram o velho até à beira do rio, e o viram beber daquela água que ele disse que não beberia. Em poucos minutos ficou tão louco, pirado como os outros e resolveu a questão – preservou a sua vida.
A outra fabuleta tem mais credibilidade histórica, parece que aconteceu mesmo com o filósofo Sócrates. Todos que estudam filosofia são unânimes em admitir que Sócrates foi o homem mais sábio de todos os tempos. Já era um máster, blaster, sábio em Atenas no seu tempo. Seu raciocínio era tão iradamente lúcido, que muitas pessoas levavam problemas intrincados até ele só para se divertirem observando como ele conduzia pelos labirintos da mente as soluções e respostas.
Bem, um dia Atenas estava mal, havia sido derrotada numa guerra cruel, e a moral do pessoal estava bem baixa. Alguém resolveu que precisavam de um bode expiatório, e exercitando ao máximo o direito a estupidez acusou Sócrates – logo ele – de corromper a juventude de Atenas. Em resumo ele foi julgado e condenado. Seus amigos fizeram de tudo para livrá-lo do destino fatídico, ele recusou todas as saídas salvadoras. Resolveu tomar o veneno que lhe deram para acabar logo com aquela palhaçada. Na sua cabeça de gênio, na qual ouso levianamente entrar, pode ter pensado: "De que vale viver num mundo, em que a mentira, a covardia e a burrice impera? Tô fora!"
O que essas duas histórias têm em comum? Muito, você pode responder. Ambas falam de sábios com destinos tristes. Alguém pode se apressar e concluir: É ruim ser sábio no mundo em que vivemos, ou você acaba bebendo da água que passarinho não bebe e fica louco ou bebe veneno e morre.
Outra leitura pode ser que se trata de escolhas extremas: Um escolheu a "vida", a "realidade", foi mais cartesiano, se é que uma pessoa que escolhe a demência pode ser cartesiano. O outro caminhou serenamente para a morte e de certa forma também foi cartesiano, se é que alguém pode escolher morrer nas mãos de imbecis, pode ser chamado de cartesiano.
Na minha visão, no objetivo dessa pequena crônica, o que há em comum, é a aldeia como redução rasteira do mundo. O Zé sábio via a aldeia como o resumo do mundo. Para ele, só havia uma escolha possível: beber da água da loucura ou morrer nas mãos de seus vizinhos. Para Sócrates, Atenas era o mundo, não lhe passou pela cabeça que o mundo era um pouco mais vasto que a sua soberba "Grécia". Acreditou que as pessoas pérfidas, apequenadas, que o condenaram, eram a representação fiel (cópias idênticas) do resto da humanidade.
Não vislumbraram o caminho do meio, ou o caminho para fora de seu mundinho. Um era tão apegado à vida, que preferiu ficar na vida embora abrindo mão de sua consciência. Outro, era tão desapegado da vida, que preferiu ignorar as muitas alternativas e abrir mão de sua existência, como um menino birrento que diz: "Ah é, é assim? Então não brinco mais! Vou beber cicuta e não volto."
Muitos de nós vivemos esses dilemas, a ilusão de que só temos essas escolhas. Um cliente, ferido pela recusa de seu amor, disse: "Ah é? Se ela não vai ser minha, não será de mais ninguém!" Outro tascou: "Ah é? Se ela não me quer, eu também não quero mais viver, vou beber cicuta, não me espere para o jantar."
Comportamentos tribalistas, segundo um autor que admiro Lou Marinoff. Esse comportamento, e mais ainda esse modelo de pensamento, tem rasgado pessoas ao meio, amizades, famílias, cidades e países. "Nosso deus é o único deus verdadeiro. Se você não crer nele, vai morrer. Mas existe a possibilidade de beber da mesma água que nós bebemos, aí lhe aceitamos."
A ironia de tudo isso, é que o mundo nunca foi tão antialdeia. A globalização tentou nos unir, todos numa mesma taba, como membros de uma mesma aldeia gigante. Mas como diria Nasrudin: "As pessoas saíram da tribo, mas a tribo não saiu das pessoas".
O programa (software) defasado ainda roda nos milhões de cabeças tribais, com programas primitivos, que foram úteis para nos trazer até aqui – não são mais. Só que ainda não foram avisados disso… e permanecem rodando seus jogos de guerra e dominação estúpidos.
Existe um caminho do meio, como diz lucidamente Lou Marinoff (O Caminho do Meio, Ed. Record), e esse, fatalmente (depois que escrevi essa palavra me arrependi, mas penso que sei o porquê de tê-la usado), vai substituir o pensamento tribal, do "nós contra eles".
A tribo humana logo estará diante do mesmo dilema do velho sábio Zé ou do grande sábio Sócrates, mas em escala global. Torço com todas as minhas forças que escolham o caminho da salvação, a única saída inteligente para seres que desejam ser inteligentes, o caminho do meio, o degrau superior da escalada da Consciência humana.