A Terra é plana?

A Terra é plana? Na ciência não há verdades definitivas. Todas elas são consideradas provisórias, porque sempre podem ser questionadas mais uma vez. Logo, qualquer um que diga que a Terra é plana pode estar certo – como diz o jogo da ciência? Quando alguém afirma que a Terra é plana, parece estar reivindicando a participação na proposição de verdades; entenda essa lógica  

A ciência se desenvolveu como um jogo democrático. Isso quer dizer que aquilo que se considera verdadeiro tem de ser o resultado de uma discussão aberta, sem envolver nenhum tipo de preconceito ou de princípios preestabelecidos. Cada jogador possui as condições de propor qualquer resultado para o jogo. Somente depois de terminada a partida, disputada entre todos os jogadores, é que algo é considerado verdadeiro.

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Mas o jogo nunca termina de fato. Isso quer dizer que qualquer verdade que resulta de uma partida científica sempre pode ser objeto de uma nova partida. Por isso, na ciência não há verdades definitivas. Todas elas são consideradas provisórias, porque sempre podem ser questionadas mais uma vez.

É claro que isso vai contra todo tipo de verdade tradicional. Esse tipo de conhecimento reivindica reconhecimento por ter sido afirmado por alguém especial ou por outra forma de autoridade, como um livro considerado sagrado por exemplo. Quando uma verdade não resulta de uma discussão aberta e científica, se trata de uma verdade tradicional.

Essa é uma separação que parece muita clara: a ciência que se organiza de uma maneira e as verdades tradicionais em que se joga um outro jogo muito diferente. Porém, as coisas começaram a ficar complicadas quando uma pessoa sem formação científica apresenta uma proposta de verdade. Por exemplo, alguém afirma que a Terra é plana.

A Terra é plana?

Para a ciência isso não faz sentido, porque já está demonstrado que a Terra é arredondada. Porém, esse tipo de resposta parece contrariar aquela premissa da ciência segundo a qual qualquer coisa pode ser revista em uma nova partida. Afinal, para chegarmos à verdade – ou, mais modestamente, para não cometermos tantos erros – tudo pode ser revisto ou não?

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Rever todas as verdades pode empacar a ciência

Se a ciência fosse rever todas as verdades que já adquiriu, ela seguramente não poderia avançar em nenhuma direção. Assim que a verdade A fosse estabelecida em uma partida e os cientistas se movessem para obter a verdade B, alguém poderia dizer que não acredita em A e a partida teria que recomeçar do zero, sem nenhum verdade definitiva.

Penso que isso é o que ocorre quando alguém afirma que a Terra é plana. Não faz sentido afirmar que os cientistas já demonstraram que a Terra é arredondada, porque isso envolveria alterar as regras do jogo aberto da ciência. Um cientista não é fonte de autoridade, porque isso contraria o seu trabalho essencialmente democrático de busca por verdades. Afinal, qualquer um que diga que a Terra é plana pode estar certo – como diz o jogo da ciência.

Quando alguém afirma que a Terra é plana me parece estar reivindicando a participação na proposição de verdades. Isso parece ser um direito de cada pessoa e, como tal, não pode lhe ser retirado. Mas, por outro lado, caso se tenha realmente esse direito, então não se pode dizer que há verdades já definitivas. E se não as temos, então a ciência deve recomeçar tudo de novo, sempre que alguém solicitar uma nova partida sobre qualquer coisa.

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Nesse caso, a ciência teria que ficar patinando sempre no mesmo lugar, sem poder avançar porque qualquer um sempre poderia solicitar ainda uma nova partida sobre o mesmo problema. Suponhamos que se apresentem novamente as provas de que a Terra é arredondada para um descrente. Diante delas, ele se convenceria que estava errado.

Nada se pode fazer que evite que uma outra pessoa tenha dúvidas sobre o formato do nosso planeta. A não ser, claro, que uma verdade sobre isso se torne tradicional. Quer dizer, a menos que ela se converta em uma verdade inquestionável. Mas isso contraria a ciência justamente na sua proposta de não aceitar verdades definitivas.

Podemos abrir mão dos procedimentos da ciência e passamos a considerar algumas verdades como válidas para sempre. Mas isso não reflete o espírito antitradicional da atividade científica. Se queremos manter o direito de qualquer um questionar qualquer coisa, a ciência não poderá avançar. Curiosamente, para que o jogo democrático da ciência possa avançar, parece que teremos que caçar o direito democrático de cada um em questionar verdades tradicionais.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie