por Aurea Afonso Caetano
Começei a escrever este texto às vesperas da eleição e o terminei após a apuração dos votos.
O clima entre as duas facções concorrentes não poderia ter sido pior. Falo em facções porque mais do que partidos políticos, neste momento estamos assim divididos. Animosidades, ódio e desqualificação do outro parecem ser as únicas saídas possíveis para resolver este embate.
Gostaria de compartilhar trecho de um texto de Milton Bonder chamado “A Ditadura do Bom”. Em artigo publicado há quinze anos em um jornal de São Paulo, o rabino diz:
“Um dos pilares da ética e do humanismo no Ocidente é a frase bíblica “ama teu próximo como a ti mesmo”. Central para o monoteísmo ético-judaico e fundadora para o cristianismo (…) traduzida popularmente por Hilel como “não faça aos outros o que não queres que façam a ti”, essa frase é a origem do direito e das conquistas de cidadania que se consagraram no Ocidente.
Há um aspecto dessa frase, entretanto, que me parece particularmente importante diante dos desafios de nossos tempos. Trata-se da possibilidade de ler, no hebraico original, em vez de “próximo”, uma outra palavra de grafia idêntica e cujo significado é “ruim”. A frase se leria então: “Ama o teu ruim como a ti mesmo”.
Em tempos de eleição o que é diferente é visto como ruim. Para que possamos nos fortalecer, para fazer valer o que pensamos, precisamos dividir o mundo entre nós e os outros, vermelho e azul, sul e norte, “coxinhas” e “bicho-grilos”, ricos e pobres. Difícil sair da divisão e pensar a possibilidade de que o outro seja meu semelhante; nestes tempos o diferente é o ruim.
Talvez sejamos tão semelhantes, que para que possamos nos diferenciar, precisemos acentuar pontos de divergência e eles podem ou não ser de fato importantes. Nestas últimas semanas assistimos a (e muitas vezes participamos de) verdadeiras batalhas nas quais mais importante do que mostrar o que pretendemos fazer, é mostrar que somos melhores que nossos adversários e para isso vale tudo, vale até mentir e confundir.
Ora, se não é possivel entrar em contato com o ruim ou o sombrio dentro de nós, mais fácil projetar isso no outro, em meu semelhante que assim passa a carregar tudo aquilo que não reconhecemos em nós mesmos.
Mais difícil do que aceitar o outro, é aceitar o “lado negro da força”. Importante lembrar que não existe ser sem sombra. Ela define o que sou, dá consistência, profundidade – não há ser que não tenha sombra. Difícil acolhê-la e fazer contato positivo com ela.
Digo agora com Jung:
“Um homem completo, no entanto, sabe que seu mais feroz inimigo, não um só, mas um bom número deles, não chega aos pés daquele terrível adversário, ou seja, aquele “outro” que habita em seu seio.(…) Todo consciente procura, talvez sem perceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É no oposto que se acende a chama da vida”.
E, agora que os votos já foram contabilizados percebemos que não houve diferença significativa entre um e outro candidato. Estamos divididos! E então, o que nos espera? Quatro anos de separação? Acredito que a única saída viável será a possibilidade de olhar para o outro lado e tentar incluir o diferente, reconhecer o que projetamos no outro e aceitar isso como o nosso aspecto ruim. Conseguiremos sair dessa polaridade?