Amizade: o que Aristóteles tem a nos ensinar sobre ela?

Entenda por que os ensinamentos sobre amizade de Aristóteles, escritos cerca de 400 anos antes da Era Cristã, ainda estão atuais e em sintonia com a hipermodernidade das redes sociais.       

O filosofo grego Aristóteles ficou conhecido principalmente por influenciar na ciência, política e estética, mas não por seus escritos sobre amizade. Mas pensar sobre a amizade é questão antiga, no século 4 a.C. ele escreveu que “ninguém escolheria viver sem amigos”, mesmo que pudesse ter todas as outras coisas boas no lugar deles. Não é surpresa já que a amizade existe desde que o homem é homem.

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Emily Katz, professora de filosofia na Michigan State University, cita lições sobre a amizade que Aristóteles ainda nos ensina nos dias de hoje.

Condição para uma amizade existir: boa vontade recíproca e reconhecimento  

Uma lição sobre a amizade vem da definição proposta por Aristóteles: uma boa vontade recíproca e reconhecida. Ela só existe se for reconhecida por ambas as partes, não basta desejar o bem de outra pessoa, ambos têm que reconhecer essa boa vontade mutuamente. Nas palavras de Aristóteles: “Convém, então, que uma tenha boa vontade com o outro e se desejem todo o bem, e que entendam isso um do outro”.

Aristóteles ilustra esse ponto com um exemplo de um relacionamento parassocial, ou seja, um tipo de relacionamento unilateral em que alguém desenvolve sentimentos amigáveis ​​por achar que conhece uma figura pública a quem nunca foi apresentada.

Aristóteles nos ensina que um torcedor pode desejar o melhor a um atleta e se sentir emocionalmente envolvido em seu sucesso. Mas como o atleta não retribui ou reconhece essa boa vontade, eles não são amigos.

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Este pensamento é tão atual quanto na época de Aristóteles. Pense que você pode não ser amigo de alguém no Facebook, a menos que a pessoa aceite a solicitação de amizade ou que você pode ser seguidor de alguém nas redes sociais sem que necessariamente o dono da conta te conheça. O fato é que hoje pode ser mais difícil distinguir amizades de relacionamentos parassociais.

Quando os criadores de conteúdo compartilham detalhes sobre suas vidas pessoais, seus seguidores podem desenvolver uma sensação unilateral de intimidade. Eles sabem coisas sobre a pessoa que estão seguindo que, antes do advento das redes sociais, apenas um amigo próximo saberia.

O criador de conteúdo, por sua vez, pode sentir boa vontade para com seus seguidores, mas isso não é amizade. A boa vontade não é genuinamente recíproca se uma das partes a sente em relação a um indivíduo, enquanto a outra a sente em relação a um grupo.

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Por esta perspectiva, a definição de amizade de Aristóteles esclarece a natureza de uma situação essencialmente moderna.

Os três tipos de amizade descritos por Aristóteles 

1º tipo baseada na utilidade;
2º tipo baseada no prazer;
3º tipo baseada no caráter.

Cada uma surge a partir do que é valorizado no amigo: sua utilidade, o prazer de sua companhia ou seu bom caráter.

Embora a amizade baseada no caráter seja a forma mais elevada, só se consegue ter alguns amigos íntimos desse tipo. Leva tempo para se conhecer o caráter de alguém — e muita convivência para se manter uma amizade dessas.

Como o tempo é um recurso limitado, a maioria das amizades será baseada no prazer ou na utilidade.

Como duas pessoas que se usam podem ser amigas? Quando ambas as partes enxergam sua amizade da mesma forma, elas não estão explorando uma à outra, mas se beneficiando da relação. Aristóteles explica que as “diferenças entre amigos geralmente surgem quando a natureza de sua amizade não é o que eles acreditam que seja”.

Na prática, se um colega pensa que vocês são amigos porque você gosta da companhia dele, mas na verdade a amizade está baseada no fato de que ele te ajuda explicado o exercício de cálculo, ele pode se sentir magoado. Mas se ambos entenderem, por exemplo, que um precisa melhorar a nota de cálculo e o outro, a de redação, ambos podem desenvolver boa vontade e respeito mútuos com base nos pontos fortes de cada um.

Considere uma forma contemporânea de amizade útil: os grupos de apoio online. Como só se pode ter um pequeno número de amizades baseadas no caráter, muitas pessoas que estão passando por traumas ou lutando contra doenças crônicas não têm amigos próximos passando por essas experiências.

Os membros de um grupo de apoio – como por exemplo um grupo online para pessoas que enfrentam câncer ou que perderam um ente próximo – estão em uma posição única para ajudar uns aos outros, mesmo que tenham valores e crenças pessoais muito diferentes. Essas diferenças podem significar que as amizades nunca vão se basear no caráter ou na índole de cada um; no entanto, os membros do grupo podem sentir boa vontade uns pelos outros.

O que fica de aprendizado é que existe um lugar para todo tipo de amizade, e que uma amizade funciona quando há um entendimento compartilhado de sua origem.

O que faz uma amizade durar?

A amizade é mantida fazendo coisas juntos 

A preciosidade dita por Aristóteles sobre o que faz a amizade durar e que ela é um estado ou uma disposição que deve ser mantida por meio da atividade, ou seja, assim como a forma física é mantida pelo exercício regular, a amizade é mantida fazendo coisas juntos. Mas o que acontece quando você e seu amigo não podem participar de atividades juntos?

Aristóteles tem a resposta: “Amigos que se separam não são amigos ativamente, mas têm disposição para sê-lo. Pois a separação não destrói absolutamente a amizade, embora impeça seu exercício ativo. Porém, se a ausência se prolonga, parece provocar um esquecimento do próprio sentimento de amizade”.

Estudos confirmam: a amizade pode ser mantida mesmo sem atividades compartilhadas, mas, caso seja esta a situação por muito tempo, a amizade vai desaparecer.

Pode parecer que o argumento de Aristóteles perdeu sua relevância, uma vez que as tecnologias de comunicação tornaram possível manter amizades a grandes distâncias.

Mas mesmo que a separação física não signifique mais o fim de uma amizade, a lição de Aristóteles ainda é válida. Pesquisas mostram que, apesar da tecnologia, as pessoas que reduziram suas atividades no primeiro ano da pandemia de Covid-19 sentiram um declínio correspondente na qualidade de suas amizades.

O fato é que assim como na antiga Atenas, os amigos devem continuar fazendo atividades juntos. Aristóteles não poderia ter imaginado a tecnologia que temos hoje, o surgimento de grupos de apoio online ou os tipos de relacionamentos parassociais que as redes sociais proporcionam. No entanto, apesar de tudo que mudou no mundo, seus escritos sobre amizade estão mais do que nunca atuais.

Coordenador do serviço de atendimento a pacientes com tricotilomania no PRO-AMITI/IPq FMUSP. Supervisor clínico na UNIP. Psicólogo pela Universidade Metodista. Mestre em ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Especialização em Terapia Cognitivo-comportamental pelo Ambulim/IPq FMUSP. Especialização em Psicologia Hospitalar pela UNISA