por Regina Wielenska
A belíssima canção de ninar Summertime (numa tradução literal, tempo de verão – letra no final desta página), composta em 1935 por George Gershwin & DuBose Heyward, foi escolhida por mim para abrir a coluna. Escrevo este texto no dia em que se convencionou comemorar a entrada do verão no hemisfério sul.
A canção nos fala de campos carregados de algodão e da fartura de peixes. Calendário e fenômenos climáticos parecem andar cada vez mais dissociados um do outro, em clima de ruptura. Hoje em dia, cardumes desaparecem, com a pesca predatória e a poluição das águas, e nem sempre as safras se revelam abundantes, nem sempre os campos estão plenos de algodão. Há cerca de dois dias, na cidade de São Paulo, dava para vestir um agasalho leve à noite, como se no outono estivéssemos. Tempestades, por sua vez, se fazem acompanhar de inundações, prejuízos, mortes, desamparo.
Não precisamos ser ambientalistas de carteirinha para constatar que o fato do homem ocupar cada vez mais espaços antes reservados aos outros animais e à vegetação tem resultado em estragos de monta. Adicionalmente à ocupação desenfreada, vieram as diferentes formas de poluição. Somos vítimas disso tudo e também agentes do mal, seja de modo involuntário ou descaradamente deliberado.
Quem, no pleno gozo das faculdades mentais, jogaria um par de meias velhas no ralo do próprio banheiro? Quem despejaria jatos de inseticida sobre o próprio prato de alimento? Alguém riscaria a lataria do seu próprio carro com uma caneta ou chave? Praticamente ninguém, eu suponho.
Mas quantos empurram com a vassoura, ou pior, com o jato d'água, o lixo de suas próprias calçadas para o bueiro mais próximo ou para a calçada do vizinho? Quem já não viu um sofá velho arremessado ao leito de um córrego? Quantas escolas não tiveram suas carteiras, paredes e outros equipamentos depredados? Qual agricultor não considerou usar agrotóxicos potentes para exterminar pragas ao invés de recorrer ao plantio orgânico? Por acaso o leitor já não pisou em fezes caninas de animais que passeavam com seus donos, esses enojados de coletar os dejetos dos seus supostos amigos de quatro patas?
Urbanoides ou cidadãos do campo, indaguem a si mesmos: qual a colaboração de cada um para esse infecto estado de coisas? Minha consciência não é das mais limpas, visto que uso e abuso do transporte individual. Por outro lado, cultivo há longa data práticas de reaproveitamento de recursos e de envio à reciclagem de inúmeros materiais, como vidro, plásticos, papéis, etc.. Há, de fato, muito que mudar.
Verão é tempo de praia, piscina, passeios ao ar livre. Qual o destino das garrafas de refrigerante, embalagens dos sucos de caixinha, invólucros e palitos dos picolés, colherinhas de plástico dos sorvetes de massa, embalagens de filtro solar?
Será possível reaproveitar para rega das plantas a água das piscininhas infláveis? Uma chuveirada pode mesmo ser rápida? Quem dispõe de água potável de boa qualidade conseguiria carregar uma pequena garrafa térmica consigo e dispensar a água gelada vendida em copinhos plásticos com tampa aluminizada?
A canção acima foi eternizada por divas do porte de Billie Holiday e Sarah Vaughan. Retrata as palavras apaziguadoras de uma mãe ao seu bebê: papai tem dinheiro, mamãe é bonita e nada faltará a você, durma quietinha. Mas, na verdade, essa mãe estava inserida numa sociedade de violência, miséria, prostituição e tráfico de cocaína, vigorosamente retratada na ópera *Porgy and Bess.
Assim é o nosso verão: poluído, inundado, destruidor. Dependemos do poder público para o planejamento de soluções coletivas viáveis e significativas. Mas enquanto não se persegue o bem maior, por que não fazer o trabalho de formigas, coletando lixo, zelando pelas calçadas, jardins e muros da coletividade, desobstruindo espaços imundos, como se fossem propriedade exclusivamente nossa? Será que os moradores de um quarteirão seriam incapazes, por exemplo, de se organizar de modo a obter angariar ajuda para um mutirão de limpeza?
Se muita gente arranjar efetivas soluções não faremos diferença alguma no clima e na qualidade de vida nas metrópoles e no campo? Quem sabe um dia a canção de ninar que escolhi deixe de ser uma promessa em falso e o verão resplandeça sobre consciências ecologicamente capazes de amar, de modo igualitário, os espaços públicos e privados, individuais e coletivos.
*Porgy and Bess (1935), com música de George Gershwin e libreto de DuBose Heyward.
And the livin' is easy
Fish are jumpin'
And the cotton is high
Your daddy's rich
And your mamma's good lookin'
So hush little baby
Don't you cry
One of these mornings
You're going to rise up singing
Then you'll spread your wings
And you'll take to the sky
But till that morning
There's a'nothing can harm you
With daddy and mamma standing by
Para ouvir a canção na voz de Billie Holiday, sugiro o endereço da web:
http://www.youtube.com/watch?v=n4PSju9HYwU&feature=related