por Monica Aiub
Os filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari, em seu livro “O que é a Filosofia?”, afirmam que arte, ciência e filosofia são como três jangadas que possuímos para enfrentar o caos, num mergulho em busca de elementos para que possamos construir nossos planos de realidade.
Elas nos conduzem para além da opinião estabelecida, permitindo encontrar elementos para construir um pensamento que ultrapasse tal opinião. Elas nos permitem enfrentar nossos dois inimigos: o caos, que nos absorve de um lado; e a opinião prévia, que nos absorve e prende por outro lado.
O filósofo, segundo eles, trabalha com as variações, construindo conceitos: “não mais associações de ideias distintas, mas re-encadeamentos, por zona de indistinção, num conceito” (DELEUZE; GUATTARI, 1997: 260). O cientista trabalha com variáveis, determinando funções: “não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global” (idem: 260). O artista trabalha com as variedades, produzindo sensações que permanecem no tempo, provocando, por reverberação, novos blocos de sensações.
Em outras palavras, a arte nos permite um recorte do caos, traçando um plano infinito. Ela produz um bloco de sensações independente do artista que a criou, e permanece no tempo, agindo como bloco de sensações e nos fazendo, através de perceptos e afectos, sair da opinião em direção a algo maior, à totalidade, ao grau máximo de liberdade, onde todas as possibilidades estão presentes.
A ciência trabalha com constantes e variáveis. Assim, observa as regularidades existentes na natureza, extraindo, da observação dos hábitos naturais, uma lei geral. Contudo, a lei é sempre probabilística, pois assim como o recorte da arte, é também um recorte da totalidade. O hábito constante poderá ser modificado a qualquer momento, por elementos aleatórios.
Assim, quando a ciência é fixada e não questiona seu próprio fazer, torna-se a mesma opinião que prende, que restringe possibilidades. “A ciência volta-se contra a opinião, que lhe empresta um gosto religioso de unidade ou de unificação. Mas assim ela se volta, em si mesma, contra a opinião propriamente científica, enquanto Urdoxa [doxa, opinião originária] que consiste, ora na previsão determinista (o Deus de Laplace), ora na avaliação probabilística (o demônio de Maxwell)”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997: 265).
A filosofia, ao construir conceitos, o faz com base na realidade, articulando os elementos dela extraídos, através de conexões, articulações que não são previamente estabelecidas, nem guiadas, são criadas. Ao afirmarem que “A junção (não a unidade) dos três planos [planos traçados no caos por arte, ciência e filosofia] é o cérebro” (p. 267), os autores questionam como ocorrem os “mapas cerebrais”, e ao discutirem a Gestalttherorie e a fenomenologia, afirmam: “A filosofia, a arte e a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos sob os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro, os três planos, as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta.” (Idem: 269).
Um cérebro que pensa, sente, observa e conhece. Um cérebro que vive num corpo e num mundo, e pode ser lido como uma Espécie, um “cérebro coletivo”, que contém as conexões entre os diferentes cérebros. Ou seja, não se trata de um eu, subjetivista, que dá sentido ao mundo fazendo uso da arte, da ciência e da filosofia. Trata-se, sim, de um cérebro-sujeito que interage com o mundo, e em suas múltiplas interações, afeta e é afetado, provocando, através da arte, da ciência e da filosofia, a construção de formas de vida.
Podemos, assim, definir a ciência como o plano do conhecimento. Em ciência conhecemos através da observação das regularidades, das constantes e variáveis, através das quais extraímos leis gerais que regem a natureza. Criamos com isso um conceito de natureza, mas precisamos sempre lembrar que tal conceito é criação humana, com base nas regularidades observadas.
Assim sendo, é preciso que a observação seja mantida, pois uma regularidade pode perdurar por um tempo, e deixar de existir por motivos vários. Caso não seja atualizado, o conceito criado a partir das observações de regularidades poderá se transformar numa opinião sem fundamento, levando a equívocos. Em outras palavras, se a teoria não é verificável na prática, é preciso rever a teoria.
Por outro lado, podemos definir a arte como o plano da sensação. É possível a sensação gerar conhecimento? É possível gerar sensações através do conhecimento? Para os filósofos Deleuze e Guattari, sim. Um bloco de sensações produz afectações. Ser afetado é ser provocado a movimentações. No livro A Dobra, Deleuze descreve como as forças elásticas – movimentos de nosso entorno, provocam forças plásticas – movimentos internos.
O conhecimento, segundo Deleuze, não se estabelece como no modelo cartesiano da “árvore” e sim como um modelo rizomático, como a “grama”, cujas raízes se interconectam de modo indissociável. Não há como apontar um único caminho, um processo linear para a construção dos saberes. Estes se dão através das múltiplas afetações, provocadas constantemente em nossas interações com o mundo.
Artepneia
Durante as aulas do curso “Arte, Ciência, Saúde e Doença: Neurodiscurso” (ministrado pelo prof. Dr. Afonso Carlos Neves, na UNIFESP, no primeiro semestre de 2011 – http://neuro-humanidades.blogspot.com ), foi levantada, pelo professor, a possibilidade de uma “artepenia”, ou seja, a ausência de arte, gerando uma doença. Isto é não apenas possível, mas verificável em alguns casos em filosofia clínica. Atendi uma pessoa cujo diagnóstico de distúrbio bipolar foi modificado pelo médico psiquiatra, após seu retorno à criação artística (o médico considerou um equívoco tê-la diagnosticado como bipolar); outra cujo diagnóstico de depressão crônica modificou-se após o retorno ao teatro; e uma terceira, cuja anorexia se foi com a dança. Poderia citar muitos exemplos, e eles aparecem em contextos onde a arte é fundamental à existência da pessoa, mas por algum motivo é considerada supérflua, desnecessária, inconveniente, e por isso abandonada.
Mas nossa ciência, tal como está estabelecida em sua prática, consegue observar dados que apontem a ausência de arte como motivo de um adoecer?
Consegue mensurar a falta ou o excesso de determinadas sensações? De alguns pensamentos? E ainda que os considerasse, haveria um padrão estatístico capaz de estabelecer o quanto seria a “justa medida” de sensações, de pensamentos, de sentimentos, de emoções, etc?
Se voltássemos à “justa medida” aristotélica, ainda lá encontraríamos a necessidade de lermos os contextos para verificarmos o quanto é necessário para que um hábito se torne virtude ou vício. Ele exemplifica com algo que vale para nós até hoje: o excesso de medo pode ser prejudicial, na medida em que paralise a ação; a ausência de medo também pode ser prejudicial, colocando nossa vida em risco. Mas como determinar a medida certa, necessária a nossa ação? Isso dependerá de inúmeros fatores. Alguns advindos do contexto, outros advindos de nosso modo de ser.
Considerando que não apenas os contextos variam, como também nossos modos de ser, não há como determinar previamente o quanto de medo é normal, saudável e o quanto é indicativo de uma doença que necessite ser tratada, exceto se considerarmos nossos contextos e nossas múltiplas interações com eles.
E como observar o quanto de arte necessitamos em nossa existência? Da mesma maneira, não há como traçar previamente. É preciso estudar cada contexto, cada relação, cada pessoa.
Assim, não se trata de pregar a arte como forma para solucionar todos os problemas, ou a filosofia, ou a ciência. Trata-se de fazer uso das formas que construímos até então para nos apropriarmos dos elementos que constituem nossas formas de vida e construirmos nossa existência como nossa “obra de arte”, respeitando a variedade de materiais possível, os blocos de sensações, as variáveis funções observadas na regularidade dos hábitos, e as variações dos conceitos.
Como afirma Peirce (2008), uma mesma nota musical pode, na interação com as demais, compor inúmeras melodias, incontáveis harmonias. Por isso, não podemos considerar um neurônio, um cérebro, um corpo, uma pessoa isoladamente, é preciso observar o neurônio em interação com os demais, num cérebro que está num corpo, numa pessoa, que habita um mundo e se relaciona com outros, constituindo diferentes harmonias possíveis.
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica: Prática da autonomia do pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Filosofia Clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UNB, 1985.
DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 2007.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
PEIRCE, C. S. Ilustrações da Lógica da Ciência. São Paulo: Ideias & Letras, 2008.