por Roberto Goldkorn
“No instante em que olhamos à nossa volta e vemos tantas ameaças ao nosso futuro como humanidade, paramos de nos centrar em nossos egos e passamos a agir como uma real coletividade”. Li essa frase num comentário do Facebook com centenas de curtidas e dedinhos e coraçõezinhos. Fiquei besta. A frase em si está tão completamente composta de equívocos e mentiras que parece até o setor de operações estruturadas de uma grande empresa investigada na operação Lava jato.
Ao mesmo tempo, o autor da frase de efeito, me deu várias oportunidades de exercer meu ofício de investigador dos “crimes de pensamento”.
Convido vocês leitores a embarcar nessa investigação que aguça nossa mente pensante.
A própria afirmação inicial colocada numa perspectiva temporal: “No instante em que olhamos à nossa volta”, já é preocupante do caminho que o raciocínio está tomando. Não existe esse momento mágico, esse estalo quando nos damos conta de alguma realidade, de alguma ameaça que atinja a todos. Essa percepção quando acontece, é fruto de algum processo gradual e quase sempre assimétrico quando se trata de grandes grupos sociais. O estalo acontece sim, mas para indivíduos ou pequenos grupos motivados, submetidos a uma mesma estimulação, em geral de conteúdo religioso ou ideológico.
“Olhar à nossa volta”. Taí uma coisa cada vez mais rara. Quando um grupo grande de pessoas “olha à sua volta” em geral está usando lentes muito específicas, e ao contrário de “ver” a realidade à sua volta, vai ver apenas aquilo que já acreditam ser a realidade. Quer exemplos?
Os radicais religiosos, os militantes ideológicos, os apaixonados patológicos, os membros de tribos. Com um pouco mais de atenção podemos descobrir que olhar nem sempre corresponde a ver, que e bem mais complexo e requer mais habilidades. Quer um exemplo? Quando eu digo que diante das notícias via mídia, que o mundo hoje está muito violento, que matamos muitos irmãos de planeta etc. Isso é o que se vê, mas para olhar, precisaríamos colocar essa constatação numa perspectiva temporal, ou seja, conhecer melhor a História.
As guerras de hoje, por mais cruéis que sejam, matam e destroem muito menos que as da antiguidade, ou mesmo as de cem ou duzentos anos atrás. Quando reclamamos do “racismo” atual, nem imaginamos o que era a vida dos judeus, dos negros há pouco tempo digamos cem anos para trás. Então “olhar a realidade” e saltar para conclusões definidoras é quase sempre um exercício que lesa a verdade.
É certo que hoje, com mais recursos tecnológicos e acesso à informação (e a desinformação de igual modo) nosso horizonte de detecção de ameaças aumenta exponencialmente. Podemos sair da Terra e ir até cantos distantes do espaço para “ver” um asteroide em rota de aproximação com nosso planeta.
“Paramos de nos centrar em nossos egos”. Paramos quem cara pálida? Onde o autor da frase prospectou essa conclusão? Onde pode ser visto um sinal de renúncia aos egos inflados? Eu não vejo, ao contrário. Vejo apenas coletivos cada vez mais aguerridos formados por egos ferozes que apenas têm em comum os mesmos hipnotizadores.
A humanidade ainda infantilizada, e portanto, composta por egos fortes, egoístas, militantes ou indiferentes, está mais estranha a si mesma, não se reconhece como “raça humana” tripulantes do mesmo barco.
“Passamos a agir como coletividade”. Sim existem sinais de que em certas situações passamos a agir como coletividade, em prol do bem comum, renunciando aos nossos interesses de conforto ou poder. Mas são sinais fracos, esparsos, localizados e em sua grande maioria reativos e rarissimamente proativos. Esses microcoletivos só existem em função dos grandes coletivos que insistem em ser a ameaça à vida no planeta.
A visão do autor da frase que nos ajudou nessa aventura do pensar, por mais dura que seja, é apenas um utópico, alguém que bem-intencionado projeta a sua visão-desejo como se fosse uma constatação científica generalizável.
Utopias costumam ser encantadoras para quem as produz ou para quem embarca nelas, encantadoras no sentido de encantamento, feitiço, mesmerização.
Conheço muitas pessoas que se refugiam em utopias recém-adquiridas, e de tão deslumbradas com o que veem em suas mentes, saem por aí tentando “vendê-las” no varejo e no atacado, e ficam muito frustradas quando percebem que existe resistência por parte de muito “fregueses”.
Escrever sobre utopias é sempre mais agradável e bem-vindo, do que desconstrui-las. Veja você, por exemplo, o sucesso das drogas, sejam as lícitas ou as ilícitas.
Porém, a fantasia utopista, é escapista, e paradoxalmente, quanto mais escapistas, menos chances temos de escapar de qualquer destino trágico que o futuro nos reserve.
Embarcar em utopias (é claro que quem vai nessa viagem, acredita estar aderindo a uma ideia real, em nada utópica), é carimbar o passaporte para pesadelos e frustrações. Exatamente o que acontece, quando uma pessoa “perdidamente” apaixonada descobre de forma inescapável, que foi enganada, traída, ou que o objeto de sua paixão nem sequer tinha existência real.
A “realidade alternativa” ou verdade alternativa como está sendo renomeada a mentira, é uma droga perigosa com efeitos colaterais graves, entre eles: frustração, ódio, fraturas emocionais graves, negação de sua (e a do outro) humanidade.
Como disse Juscelino Kubitschek: “Dormir é muito bom, mas ficar acordado é bem melhor”.