por Fátima Fontes
Introdução
"Ao nos afastarmos do mundo dos afetos, do nosso mundo interior, ao racionalizarmos e menosprezarmos o amor, a pulsão de vida, abrimos espaço para o aspecto negativo desse mundo interno. A destrutividade, a violência exacerbada, a ambição, o egoísmo, a inveja, o narcisismo, o que existe de pior no ser humano, liberados e estimulados pela vida social, levam o homem a buscar a satisfação de seus desejos em detrimento dos desejos e da vida do semelhante"
(Sueli Damergian, professora da USP, no seu livro: Para além da barbárie civilizatória. O amor e a ética humanista. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009, p.28). .
Olá, queridas e queridos leitores de nossa coluna, estamos juntos mais uma vez para pensar e buscar saídas para os desafios da vida com o outro.
Nossos tempos e ritmos em cidades frenéticas muito têm colaborado para a sensação que temos em muitos momentos, de estarmos meio atônitos, perdidos e desesperançados para viver e mais ainda para viver a vida com o outro.
Acompanhamos desde o início do ano de 2014 a verdadeiros "terremotos, tsunamis e secas emocionais", que nos relembram os tempos da barbárie humana, no qual só importava a sobrevivência dos mais fortes e a conquista, debaixo de um processo de banalização e desvalorização da vida.
Destacarei dois ângulos dessa barbárie humana atual: as mortes de nossas crianças e adolescentes e as mortes de nossas esperanças em um mundo mais justo e digno. Assim como apontarei para possibilidades de transformação que passarão necessariamente por um processo de aprendizagem amorosa e cidadã.
Grandes cidades brasileiras: juventude dizimada
Acompanhem a cena, que de tão corriqueira, já nem é coberta pela mídia, que parece se mover com grande avidez para cenas de catástrofes, crimes e desordens de toda a ordem. Às vezes penso que não há mais o que noticiar, será? Ou num mundo regido por consumo e audiência, a grande sede dos compradores e da audiência tem sido por desgraças?
Estavam numa mesa de uma pizzaria de um bairro de periferia da cidade de São Paulo, dez adolescentes entre 14 e 17 anos, celebrando o aniversário de um deles, quando por volta das 23:00 horas entraram três jovens que se dirigiram ao grupo e exigiram que o aniversariante tirasse o tênis de marca que usava e o desse para um deles. Diante da negativa da intimação, o assaltante, também um jovem, sacou uma arma da cintura e disparou três tiros à queima roupa na cabeça do adolescente aniversariante e em grupo saíram rapidamente do restaurante, e subiram na mesma moto que os conduzira para o local e desapareceram, ante os olhares atônitos, estarrecidos e desesperados de todos os presentes, mas, sobretudo, do grupo de adolescentes.
E essa chocante cena nos toca, nos choca e nos entristece a todos: a cena é a de menos um adulto no mundo, que poderia construir seu mundo pessoal e relacional com competência e dignidade, e em face disso, uma onda de medo, revolta e insegurança cobriu os outros nove adolescentes que temiam por suas vidas e seu futuro que apontava para o mesmo fim do amigo assassinado, se instalando assim um mundo de desesperança em todos.
E também nos vêm muitos pensamentos: diferente da cena usual de confrontos atuais entre polícia e população, ou de grupos rivais de comerciantes de drogas, aquele foi um brutal e bárbaro assassinato de um adolescente por outro adolescente, como seria a vida deles fora daquele mórbido cenário: teriam irmãos, como eram suas relações familiares? Viviam com a avó ou com a mãe? Já tinham saído de casa? O que sonhavam para eles e para seus mundos? O que será de nossa realidade social quando daqui a quarenta anos não existirem adultos que banquem a vida aposentada de uma geração de idosos? Colapsaremos? E se não há adultos, não há novos nascimentos, seremos aniquilados, finalmente como espécie?
Somos banhados também por uma sensação de impotência e desesperança: o que fazer? Como interferir nesse processo de destruição e barbárie? Imagino caminhos em que a educação cidadã e amorosa se desenvolvam como matriz de um novo mundo pessoal e reacional, falarei mais detalhadamente sobre isso mais adiante.
Podemos acreditar que vivemos uma democracia que cumpre seus pactos sociais?
Podemos identificar no mundo e em nossa sociedade brasileira sinais de alteração dos quadros de percepção ingênua da realidade. Facilitados, antes de qualquer outro fator, pelo desenvolvimento tecnológico, que tem permitido que as informações sobre os homens e suas relações circulem pelo mundo, mediados por satélites e aparelho desenvolvidos para captarem e transmitirem as informações, temos acompanhado o movimento de levante, revolta e pressão sobre as mais diferentes formas de governo, denunciando que não é mais possível acompanhar com passividade e letargia, a um mundo societário governado por corrupção e interesses escusos.
Parece que o bem-estar social deixou de ser um direito nas sociedades mais desenvolvidas e isso gerou um estado de guerra em prol desse estado de direito entre os mais e os menos desenvolvidos. Mas de novo nos vemos em paradoxos: como guerrearmos para termos mais qualidade de vida? As guerras, seja em nome do que forem iniciadas, causam mortes e muita destruição, e o que temos acompanhado nos pós-confrontos, é ao mesmo do mesmo: os governos rebeldes ou de oposição, quando se tornam situação, tendem a eternizar as políticas corruptas e equivocadas dos seus antecessores, depostos.
E é debaixo de denúncias, apurações e o mais das vezes condenações rechedas de regalias e cinismos, que estamos vivendo o Brasil que se prepara para realizar novas eleições executivas. Os dirigentes atuais, perdidos em seu populismo, dando uma renda, que de renda não tem nada, e estimulando um consumo desenfreado que tem tornado nossas camadas mais empobrecidas, de alguns anos para cá de além de empobrecidas, megaendividadas, são criticados pelos novos candidatos à administração pública que sequer se dão ao trabalho de proporem medidas reais e concretas de reformas: sociais, jurídicas e políticas que venham conter a caotização social e financeira que vivemos.
Outra vez nos pomos de mãos e pés titubeantes: o que podemos fazer? O que precisamos: construir, cuidar e propor como sociedade civil? Mais uma vez o cenário é de indagação e de muita insegurança, mas a tomada de consciência de que problemas complexos não se resolvem com medidas simples e instantâneas, pode funcionar como bússola nessa terra de perdidos.
Criar, nutrir e desenvolver uma nova matriz social: o caminho de amar
Como já havia citado em outro momento deste texto, e em muitos outros artigos, muito me agrada a tradução do I Ching para o ideograma que apresenta a palavra crise: perigo e oportunidade. E é esse o nosso mundo pessoal e relacional atual: encontramos-nos todos no meio de muitas crises e com isso corremos perigos, mas também podemos construir novas e melhores oportunidades para nós e para o nosso semelhante.
Precisaremos, entretanto, viabilizar um longo e complexo percurso de aprendizagem pessoal e social. Teremos que nos dispor a "não saber", a termos a coragem de buscar aprender várias coisas e, inicialmente, a termos de volta as pequenas gentilezas: bom dia, como vai? Com licença, desculpe. Precisarão marcar o nosso início de dia e, com esses manejos amorosos, precisaremos atravessar o dia.
Precisaremos olhar para o nosso mundo interior, para encontrar formas de como poderemos tratar nossas feridas pessoais de amor, nossas frustrações relacionais em busca de perdão para nós e para os que nos são íntimos.
Precisaremos sair de nossos caminhos tão únicos, absolutos e individuais para aprendermos a percorrer a outra via que nos aproxime da vida comunal, da vida em sociedade: precisaremos desejar e buscar informações de como participar de nossos Conselhos de Direitos: da Criança, do Idoso, dos Conselhos Educacionais e de nossas Subprefeituras, sozinhos não podemos muito, mas sonho que se sonha junto é realidade, já cantava Raul Seixas nos idos anos de 1960.
Precisaremos reivindicar os nossos direitos cidadãos, sobretudo descobrindo onde estão os insatisfeitos com nossa corrupta ordenação política atual e juntos promovermos pressão e propormos alternativas junto a aqueles que nesse Sistema que chamamos Democrático, elegemos como representantes em nossas Câmaras, Assembleias e Senado. E mais desafiador ainda é a urgentíssima necessidade de não cairmos, por mais quatro anos, em espaços de ilusão e de má administração de nossa coisa pública, seja ela Estadual ou Nacional.
Por fim, proponho que busquemos dar sentido às nossas vidas: precisaremos encontrar nossa "fome de sentido", como nos ensinou o neuropsicólogo Viktor Frankl no pós 2ª Guerra Mundial, depois de ter passado por três Campos de Concentração Nazista, e sem querer ser apenas um sobrevivente do Holocausto, outro momento de nossa Barbárie Civilizatória, segundo ele, necessitamos todos de dar razão ao nosso viver, e só os que sofrem conseguem fazer esse percurso.
E para finalizar…
"O melhor é ter esperança", nos advertiu o profeta Jeremias, há milênios de anos atrás, em momento de grande sofrimento e desesperança pelo qual passava o seu povo judeu.
E é com esse chamado que finalizo esta nossa reflexão, e aproveitando nosso também momento artístico e cultural dos artigos, podemos fazer nossas as palavras do poeta Ivan Lins, escritas em pleno momento de escuridão política que atravessamos com o golpe político de 64: "Desesperar jamais… Aprendemos muito nesses anos, afinal de contas, não tem cabimento entregar o jogo no 2º tempo: nada de correr da raia, nada de morrer na praia, nada, nada de esquecer! No balanço de perdas e danos já vivemos muitos desenganos já tivemos muito que chorar, mas agora acho que chegou a hora de fazer valer o dito popular: DESESPERAR JAMAIS!"
E assim prossigamos!