por Pedro Tornaghi
A recente frustração de grande parte da população pelo aceite de "embargos infringentes" pelo STF cria uma circunstância favorável à reflexão do quanto as leis e tribunais que criamos são capazes ou não de regular as relações sociais a contento.
Por que existem leis? Quais processos estiveram envolvidos em sua criação? Em que sentidos elas nos são úteis ou necessárias?
Freud baseou a psicanálise no mito de Édipo que, mais tarde, inspirou seu artigo "Totem e Tabu", possivelmente o mais significativo de toda a sua produção.
Li o artigo quando adolescente e em língua estrangeira que não dominava totalmente mas, pelo apelo de urgência com que me encomendaram esse artigo, falarei apenas a partir do que lembro dele. Ou da leitura que fiz dele na época.
Em "Totem e Tabu", Freud fala de uma tribo de primatas-nômades, onde o primata-alfa tinha o direito exclusivo aos favores sexuais das fêmeas. Inconformados com a restrição ao prazer, os outros machos chegaram um dia à conclusão de que um deles sozinho não seria capaz de enfrentar o "chefe", mas que, se todos se juntassem, poderiam acabar com ele. E eles o fazem.
Na Índia, a palavra usada para nomear lei e para nomear "evolução espiritual" é a mesma: dharma
No artigo, após matar o antigo "tirano", os machos se reúnem para discutir como será a vida dali por diante. Todos tinham desfrutado de uma existência onde não era preciso tomar decisões, mas seguir o que o ex-chefe mandava ou indicava e, de repente, sem a presença desse, todos se descobrem incapacitados para saber o que fazer.
Após alguma discussão eles resolvem fazer a partilha das fêmeas, quando subitamente um deles argumenta: mas se fizermos com elas o mesmo que o "alfa" fazia, estaremos sendo iguais ao ex-chefe que repudiamos. Involuntariamente, eles criam nesse momento o sentimento de culpa para quem fosse desfrutar dos prazeres da intimidade com o feminino. E começam a se afastar de sua natureza. A mesma natureza que os impeliu à atitude drástica com o chefe.
E, há outras coisas a serem decididas, quem caça? Quem pesca? Quem faz o quê? O líder começa a ter sua falta sentida, começa-se a perceber alguma harmonia em haver um líder, uma referência central e centralizadora na comunidade. É então que alguém resolve criar um "totem" no centro da tribo, uma figura simbólica no meio da taba, que substitua a figura do antigo "chefe" e preencha a necessidade de referência daquela coletividade. E, como o totem é mudo e incapaz de dizer o que pode e o que não pode ser feito por cada um do grupo, nesse momento, surge a necessidade de criarem-se leis, que substituam as orientações do líder.
Em outras palavras, as leis são ali criadas, para suprir a ausência da figura paterna no grupo. E, desde então, torna-se necessário obedecê-las, como quem obedece a um pai. E, da mesma maneira, quem as obedece, passa a esperar justiça em troca da devoção a elas, como se espera justiça de um pai amado e querido em troca de fidelidade cega a ele. A alegoria de Freud sugere que as leis foram instituídas para oferecer ao homem uma ordem, uma ordem que substituísse a ordem natural das coisas, perdida em algum lugar do tempo de sua história. Uma substituição artificial de um dom natural perdido. E que passa a parecer necessária. Sem o ser.
Um homem que esteja sintonizado às leis do Universo não necessita de leis para decidir o que é apropriado ou não de ser feito. Ele tem uma bússola interna que o orienta. Não precisa de mapas ou bulas para saber como agir. Pode parecer utópico e ideal o estado que descrevo, mas ideal e utópico talvez seja viver de leis instituídas e reguladas por um tribunal burocrático e achar que a partir disso se encontrará a harmonia social. Harmonia construída é uma abstração maior do que uma "harmonia que brota" naturalmente de tudo o que nasce e existe por si só. Que o digam os animais, que o digam as plantas, que o diga o planeta em que vivemos, onde as guerras e as grandes desarmonias não costumam ser criadas por pássaros, plantas, pedras ou rios, mas pelos homens que adotam leis e tribunais.
Na Índia, a palavra usada para nomear lei e para nomear "evolução espiritual" é a mesma: dharma. Dessa maneira usa-se a palavra para quem aceita o mapa da vida oferecido pela sociedade para orientar seus atos e para aquele que, escutando a "voz interior" passa a agir exclusivamente conforme o próprio discernimento e percepção. Mas a Índia tem uma generosidade. Sempre teve. Quando alguém alcança o discernimento mais agudo possível a um homem, passa a ser respeitado como quem é a própria lei do Universo em carne e osso. E passa a ser chamado de Buda. A palavra buda vem de "buddhi", discernir. Buda é aquele que tem visão própria das leis do universo, e não precisa mais de regras que orientem seus atos.
Mas o cidadão comum deve respeitá-las e, com o tempo, as leis sociais foram se distanciando tanto de sua origem e função de "afinar o homem à harmonia universal" que passaram mesmo a afastá-lo. Dessa maneira, a lei das castas por exemplo, teve em seu início uma sustentação teórica divina. Dizia-se que uma pessoa que tem alma de negociante, não realizaria seus anseios sendo um guerreiro, e então, devia ser encaixado no tipo de atividade que melhor proporcionassem o desenvolvimento de seu dharma, de sua evolução espiritual.
Só que com o tempo essas castas viraram hereditárias, dessa maneira, um filho ou neto ou bisneto ou tataraneto de guerreiro, passou a ter sua existência restrita às atividades militares, mesmo que internamente se sentisse um comerciante. E, pior que isso, quem nascesse um uma família de linhagem de párias, estava condenada a viver à margem de todas as benesses e vantagens da sociedade. Tornou-se uma maneira de ter-se mão de obra barata para os serviços que ninguém queria. Até hoje, em muitos lares da Índia, um pária que trabalhe na faxina de uma casa de família, deve, ao terminar seu serviço de limpeza, sair da sala andando de costas e varrendo os lugares por onde pisa em sua retirada, supostamente para não deixar "impurezas" de um pária em uma casa de pessoas "superiores" a ele. Dessa maneira, uma lei que foi criada sob o pretexto de dar suporte à liberdade do indivíduo, ligando-o ao seu dharma, tem servido apenas para escravizar os mesmos indivíduos, privando-os totalmente da prometida liberdade.
A palavra dharma vem do radical "dhr", que significa "aquilo que sustenta". Para o indiano, o que sustenta a existência humana é o movimento evolutivo do Universo. O Universo está em constante evolução e a humanidade, como um todo, é apenas uma onda dentro desse oceano em evolução. Quando essa onda bater na praia, virão outras ondas e o Universo continuará sua sina.
Dessa maneira o que nos sustenta é essa força evolutiva, a verdadeira e grande lei a que todos estamos ligados. Encontrar o seu dharma, é encontrar onde essa força evolutiva corre como seiva dentro de si. Quem não a encontra, precisa de uma lei externa que o oriente. Quem encontra seu dharma, será que tem essa necessidade? Será que um homem que desenvolve sua sensibilidade e discernimento, que reconhece a força evolutiva dentro de cada ser, será capaz de uma atitude destrutiva ou mesmo desarmônica em relação a ele?
Até hoje não houve exemplo nesse sentido. Os homens que realmente contribuíram para o crescimento da humanidade como um todo, um Buda, um Jesus Cristo, um Zarathustra, um Lao Tsé, um Mahavira, um Mansur, e tantos outros não tiveram suas morais e éticas forjadas pelas leis ditadas por deputados ou juízes. Mas pela sensibilidade e discernimento, pelo contato direto e consciente com a lei natural do Universo. Pelo contato consciente com seus dharmas.
Tente você também. Talvez seja a única maneira de descobrir se falo de uma utopia ou realidade.