por Danilo Baltieri
Mais de 60 substâncias com atividade específica em receptores de canabinoides no Sistema Nervoso Central têm sido descritos oriundos da planta Cannabis.
Apesar dos efeitos nocivos sobre o cérebro e comportamento causados por várias dessas substâncias, um renovado interesse científico sobre seus potenciais benefícios terapêuticos têm vicejado na última década. Pesquisas científicas de boa qualidade, apoiadas por comitês de ética, devem ser estimuladas objetivando a elucidação da segurança e eficácia terapêutica dos canabinoides, sempre pautadas no bom senso e no rigor metodológico. Durante esse processo, evitar confundir medida terapêutica com uso recreativo é seriamente recomendável.
Cannabis sativa é uma das mais antigas plantas com atividade psicotrópica conhecida pela humanidade. Alguns componentes quimicamente ativos da planta têm sido considerados nocivos para a saúde, tendo em vista os quadros de abuso e dependência induzidos, bem como os problemas comportamentais associados ao uso continuado. Na planta, mais de 60 diferentes tipos de canabinoides naturais são encontrados, dentre outros constituintes como açúcares, proteínas, ácidos graxos, cetonas simples, flavonoides dentre outros.
Estudos recentes envolvendo o sistema neural endocanabinoide (sistema cerebral que reconhece os canabinoides através de receptores específicos) permitem considerar que substâncias que atuam em receptores de canabinoides centrais e periféricos têm importante papel natural na modulação da dor, controle de movimentos, apetite, memória e demais funções cognitivas. Existem vários tipos de canabinoides naturais e sintéticos que podem ser obtidos, derivados ou mimetizados a partir das plantas Cannabis sativa e Cannabis indica. Essas plantas vêm sendo utilizadas há séculos pela humanidade para diversos fins, tais como alimentação, rituais religiosos, práticas medicinais e propostas recreativas. O primeiro relato medicinal da planta Cannabis foi atribuído aos chineses, que descreveram os potenciais usos terapêuticos dessa planta há mais de 2.000 anos.
A aplicação terapêutica dos canabinoides (substâncias naturais ou sintéticas que exercem atividades sobre os receptores de canabinoides) na prática clínica é tema ainda bastante controverso, porque, apesar de algumas propriedades terapêuticas, esses compostos podem apresentar também efeitos deletérios, induzindo quadros de abuso, dependência, efeitos alucinógenos e alterações cognitivas, principalmente se houver um consumo continuado. O quadro abaixo ilustra os principais canabinoides existentes.
Tipos de canabinoides
Canabinoides naturais Canabinoides sintéticos Canabinoides endógenos Derivados sintéticos de Canabinoides endógenos Cannabigerol (CBG)
Cannabichromene (CBC)
Cannabidiol (CBD)
Delta-9-Tetrahidro-Canabinol (?9-THC)
Delta-8-Tetrahidro-Canabinol (?8-THC)
Cannabinol (CBN)
Cannabicyclol (CBL)
Cannabielsoin
Cannabitriol
Synhexyl
Nabilone
Dexanabinol
Levonantradol
Dronabinol
Anandamida
2-Arachidonylglycerol
Palmitylethanolamida
-methanandamide
Provavelmente, o tópico sobre o uso dos canabinoides com propostas medicinais nunca foi tão controverso quanto nos últimos dez anos, particularmente em países com tradição em pesquisas farmacológicas. Isso se deve, de um lado, aos efeitos deletérios para a saúde produzidos por algumas dessas substâncias e, de outro, pelo ainda insuficiente número de pesquisas clínicas relacionadas à efetividade dos canabinoides.
Quando se aventa a possibilidade da utilização de uma droga para uma finalidade clínica, os principais critérios que justificam a sua prescrição são baseados na eficácia e segurança terapêuticas, qualidade da droga, via de administração segura, e consistência dos achados de estudos científicos adequadamente desenvolvidos e controlados.
A obtenção sintética de compostos do tipo canabinoides é uma área de grande interesse entre pesquisadores de todo o mundo. Indústrias e laboratórios farmacêuticos têm desenvolvido fármacos baseados nas estruturas químicas dos canabinoides, mas as dificuldades para impedir alguns dos seus efeitos nocivos centrais têm sido grandes. Uma exceção tem sido o Nabilone®, uma potente substância canabinoide, que tem apresentado bons resultados como antiemético (aliviar enjoos) nos Estados Unidos da América e outros países. Dois exemplos de fármacos desenvolvidos com base em canabinoides são: o Marinol® (Dronabinol) elaborado pelo laboratório Roxane (EUA) e o Cesamet® (Nabilone) elaborado pelo laboratório Eli Lilly (EUA). Esses medicamentos têm sido comercializados para o controle da náusea, produzidas durante o tratamento de quimioterapia e como estimulantes do apetite durante quadros de anorexia em pacientes com AIDS, nos EUA.
Os canabinoides têm efeitos sobre diversos órgãos e sistemas orgânicos, como o imunológico e o reprodutivo. Pesquisas têm demonstrado a potencial utilidade médica dos canabinoides através dos seus efeitos analgésicos, controle de espasmos musculares em portadores de esclerose múltipla, tratamento do glaucoma, efeito broncodilatador, efeito anticonvulsivante etc. No entanto, apesar desses potenciais efeitos terapêuticos, os principais efeitos colaterais têm sido: prejuízos de cognição e atenção, sintomas depressivos, efeitos sedativos e alucinógenos, vertigem, hipotensão postural, dentre outros.
Considerando os indesejáveis efeitos ditos psicotrópicos de alguns canabinoides, pesquisadores têm envidado esforços na investigação clínica e experimental de canabinoides naturais e sintéticos que não possuam esta forma de atividade, focando nas seguintes substâncias:
a) metabólitos sem ação psicotrópica do próprio ?9-THC;
b) endocanabinoides e análogos;
c) substâncias similares estruturalmente aos canabinoides que não exerçam atividade direta sobre os receptores específicos;
d) substâncias que interferem com o transporte e metabolismo dos canabinoides endógenos;
e) substâncias que bloqueiam os receptores específicos para canabinoides.
Dessa forma, não é correto correlacionar de imediato o cigarro de maconha fumado por várias pessoas ao redor do mundo com o uso de substâncias canabinoides produzidas sob condições controladas e seguras para propostas terapêuticas. Existem, de fato, vários compostos do tipo canabinoides que apresentam propriedades terapêuticas, embora também apresentem efeitos colaterais importantes e preocupantes.
Estudos sérios e onerosos estão sendo desenvolvidos ao redor do mundo para estabelecer relações entre a estrutura química de diversos compostos canabinoides e sua atividade sobre o Sistema Nervoso Central e demais sistemas orgânicos, bem como sua segurança e eficácia terapêuticas. Os efeitos ditos "psicotrópicos", como os citados acima, prejudicam o uso racional e ético de vários compostos com finalidades terapêuticas.
Ocorre que uma classe de drogas não é boa ou má por si só. Uma mesma substância pode possuir propriedades terapêuticas em uma situação, e propriedades tóxicas em outra. A utilização de um dos mais conhecidos canabinoides, o Tetra-Hidro-Canabinol (?9-THC), na sua forma fumada (maconha), é um exemplo de uso problemático desta classe de substâncias. Apesar das suas raízes remotas, a maconha é uma droga que tem sido mais frequentemente usada por jovens desde as décadas de 70 e 80. O aumento do consumo desde então, tem motivado pesquisadores a entender o impacto do uso desta droga sobre o funcionamento físico e psicológico dos usuários. Evidências científicas abundam demonstrando que o consumo regular de maconha aumenta a chance do uso de outras substâncias, induz sintomas depressivos e psicóticos, está relacionado a um pior desempenho cognitivo nas atividades escolares e no trabalho. Nesta seção do artigo, procuro revisitar as principais evidências sobre os efeitos negativos do uso da maconha e apontar as preocupações de agentes da saúde em relação à descriminalização ou mesmo legalização do uso para fins recreativos.
Efeitos agudos da maconha
Os sintomas adversos mais frequentes são ansiedade e reações de pânico, principalmente entre usuários ocasionais. Para aqueles que experimentam esses efeitos, a sensação é bastante negativa.
A toxicidade aguda da maconha é baixa, uma vez que os canabinoides não provocam depressão respiratória, como outras drogas podem assim o fazer, como é o caso de opioides e álcool, por exemplo. A dose fatal é muito difícil de ser atingida, inclusive por um usuário pesado.
Acidentes de trânsito
Um dos efeitos agudos de preocupação pública é a possibilidade de que usuários intoxicados por maconha apresentem aumentada chance de provocar acidentes de trânsito. De fato, o uso da maconha prejudica o desempenho cognitivo e comportamental, o que pode aumentar o risco de acidentes automobilísticos. Vários estudos têm mostrado esse relacionamento, com o uso de maconha antes de dirigir aumentando o risco de acidentes. O risco atribuído à maconha é bem menor do que aquele atribuído ao uso de bebidas alcoólicas (2,5% versus 29%).
Efeitos crônicos
A Síndrome de Dependência de maconha é uma das principais consequências do uso regular. O risco de dependência é de cerca de 9% entre pessoas que já fizeram uso da droga na vida. Este risco aumenta para uma em seis pessoas que iniciaram o consumo na adolescência, e para uma em três pessoas que usam a droga regularmente. Aqueles em alto risco de desenvolver dependência são os que iniciam o consumo precocemente e que têm histórico de pobre desempenho acadêmico, comportamento desafiador na infância e adolescência, pobre supervisão parental, história familiar de problemas com o uso de substâncias. Sintomas de síndrome de abstinência têm sido vislumbrados, tanto entre usuários regulares e crônicos quanto entre usuários pesados, como: irritabilidade, diminuição do apetite, ansiedade, sintomas depressivos, insônia. Estes sintomas tipicamente surgem cerca de 24 horas após o último consumo da droga, e se tornam mais intensos após 10 dias.
Riscos respiratórios
Fumantes de maconha usualmente registram mais frequentemente sintomas de bronquite do que não usuários. Não há evidências, até o momento, sobre o aumento do risco de enfisema pulmonar entre fumantes de maconha que não fumam concomitantemente tabaco.
Câncer
Há boas razões para acreditar que maconha cause câncer de pulmão, do trato gastrointestinal e de outras estruturas das vias respiratórias. O cigarro de maconha contém muitos dos mesmos agentes carcinogênicos encontrados no cigarro comum. Usualmente, fumantes de maconha inalam mais profundamente a fumaça do que fumantes de tabaco, e apresentam muitas das modificações celulares pulmonares que precedem o aparecimento de câncer de pulmão.
Efeitos cardiovasculares
A maconha (bem como outros canabinoides) aumenta a frequência de batimentos cardíacos. Embora este efeito seja minimizado com o tempo de uso entre jovens saudáveis do ponto de vista cardiovascular, naqueles que já demonstram doença cardíaca, hipertensão arterial sistêmica e isquemia cerebral, o consumo deve provocar mais danos.
Consequências psicossociais
Pesquisas tipicamente encontram associações entre uso de maconha e pobre desempenho escolar. As taxas de consumo dessa droga parecem ser maiores entre jovens com maiores taxas de absenteísmo escolar. Embora seja difícil estabelecer uma relação de causa-efeito, diferentes estudos têm defendido três hipóteses:
a) o uso de maconha contribui diretamente para o pobre desempenho;
b) um prévio desempenho escolar insatisfatório contribui diretamente para o consumo da droga;
c) tanto o pobre desempenho escolar quanto o consumo da maconha são provocados por outros fatores que se somam para um desenlace indesejável.
Outras drogas
Usuários precoces de maconha e usuários regulares mais frequentemente experimentam outras drogas, como a cocaína, em relação a não usuários ou usuários tardios. Três explicações são comumente oferecidas para essa associação:
(a) o mercado de drogas que oferece maconha é frequentemente o mesmo que oferece outras substâncias;
(b) usuários precoces de maconha acabam por experimentar outras substâncias por razões possivelmente não relacionadas com a maconha;
(c) efeitos farmacológicos da maconha aumentam a propensão para a experimentação de outras drogas.
Sintomas psicóticos (alucinações e delírios)
O uso de maconha está associado com o surgimento de sintomas psicóticos, conforme mostram várias pesquisas realizadas em população geral. O início precoce do consumo e a dose consumida da droga são fatores de preocupação nesse relacionamento. De fato, uma maior concentração de THC (tetra-hidro-canabinol) nos cigarros de maconha aumenta a chance de sintomas ansiosos, depressivos e psicóticos.
Política e maconha
Em vários países ao redor do mundo, a discussão em torno da maconha e dos seus possíveis efeitos à saúde do usuário é simplista e comumente se encerra em duas bandeiras:
(a) a maconha deve ser legalizada, ou pelo menos descriminalizada, tendo em vista seus poucos efeitos danosos; ou (b) a maconha deve ser mantida como droga ilícita, dados seus efeitos danosos à saúde física e psicológica do usuário.
Esta visão simplista do problema é perniciosa e pouco produtiva, tendo em vista que se criam dois grupos fechados ao posicionamento alheio. Os defensores da legalização não aceitam o fato e as evidências a respeito dos problemas físicos, psicológicos e sociais advindos do consumo da droga. Por outro lado, os defensores da manutenção da proibição devem reconhecer que os efeitos da maconha não são manifestamente mais graves do que os efeitos do álcool e do tabaco e deveriam envidar esforços no controle sobre o uso e venda destas outras substâncias também.
Eu acredito que as visões pró e contra descriminalização e legalização devem ser combinadas, sempre se baseando em evidências científicas e bom senso. No momento, há a necessidade de mais pesquisas para determinar a eficácia e segurança terapêuticas das várias substâncias canabinoides conhecidas, antes da sua aceitação na prática médica. O preconceito não deve barrar o incentivo às pesquisas; da mesma forma, a aceitação do uso de uma substância deve sempre ser norteada por evidências científicas de qualidade, a fim de não colocar em risco a saúde física e psicológica dos potenciais usuários.
O progresso científico atingido nos últimos 20 anos sobre os mecanismos de ação dos canabinoides tem revivido o interesse a respeito dos potenciais terapêuticos desta classe de substâncias. As pesquisas clínicas realizadas até o momento permitem afirmar que esta classe de substâncias exibe promissor potencial terapêutico como antieméticos, estimulantes do apetite, analgésicos, bem como no tratamento de quadros de dor, glaucoma e distúrbios do movimento. Contudo, o uso de canabinoides para propostas recreativas, através de formas de administração nocivas, sob condições não controladas consiste em um problema de saúde pública que precisa ser adequadamente manejado.