por Regina Wielenska
Peço ao leitor que examine a letra da canção abaixo, depois vamos pensar um pouquinho a respeito do tema que escolhi: relacionamentos que desandam após o casamento.
A História de Lily Braun
Composição: Edu Lobo/Chico Buarque
Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom
Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz
E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou
Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues
Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê
Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Ao longo de uma temporada da companhia de espetáculos, testemunhamos o fim melancólico do amor entre a artista de cabaré e o cliente que se encantou por ela. A vida no palco, bastante difícil, era entremeada pela oportunidade de sonhar com a chegada do amor. Ele a devorou com o olhar, ela gradualmente se revelou pra ele, expôs suas carnes num jogo de esconde-esconde a um homem regado a uísque, que a tratou com flores, idas ao cinema, poemas, olhares lascivos e outras surpresas.
A ameaça da separação, pelo fim da temporada naquela cidade, os atingiu com força, numa fase do relacionamento caracterizada pela embriaguez erótico-amorosa. Daí a proposta de casamento, o sonho dela seria realizado e ele a possuiria só para si. O risco de nunca mais se verem seria afastado com a certidão de casamento.
E assim o bom ficou ruim: “Ela já é minha, é agora uma mulher a quem se deve respeito, não posso fazer com ela o que eu fazia com a vedete…”. Erotismo e criatividade parecem não combinar com o casamento na cabeça do marido. Nada mais sinalizava haver ebulição sexual e amorosa entre Lily e seu admirador. Isso ficou no passado, num mundo em que a garota brilhava no palco e fazia derreter o coração do fã. Existiu entre eles um convívio hormonal, de entrega recíproca, de voracidade. O cartório representou o funeral dessa efervescência amorosa, dessa paixão.
O que podemos aprender com o desacerto do casal?
Casamento não pode ser a pá de cal sobre o encantamento, o erotismo, as pequenas delicadezas, as surpresas que trazem sabor à aridez do cotidiano. Esposa não precisa virar um ser canonizável, acima do bem e do mal, desprovido de desejos e necessidades tão carnais quanto as que antes predominavam.
Conquista é para ser garimpada no dia a dia, com perseverança, desvelo, lascívia, imaginação e muita paciência. Nada de se acomodar e achar que o casamento inerentemente assegura um contrato de fidelidade e interesse recíprocos. O jeito é inserir no relacionamento conjugal a arte da sedução, entremeada com fazer supermercado, trabalhar, fazer faxina e pagar contas. Nada fácil, mas para quem se acomoda na rigidez do personagem da canção, o destino é inclemente. Prá quem se arrisca mais e se empenha em cultivar a sensualidade e o amor, o mundo dos relacionamentos nem sempre assegura recompensas, embora para alguns o percurso de fato resulte em delícias e doçuras.