por Luís César Ebraico
Fragmento de um longo e-mail que me foi enviado por um de meus irmãos, que chamarei aqui de Otávio:
"Lembro de uma vez que você fez uma reunião de família e chorou bastante para falar de algumas culpas e eu fiquei espantado porque não conseguia imaginar você com aquela "fraqueza". Foi a primeira vez que pensei que chorar poderia significar força, já que eu tinha passado tantos anos chorando descontroladamente (era uma vergonha na escola), coisa que só consegui dominar com muita força de vontade."
Decidi que vou responder a ele, empregando o tipo de formato que uso aqui:
"Otávio, sei que você é uma pessoa interessada em Psicologia, particularmente a de cunho psicanalítico. Então acho que – relativamente a "choro poder significar força" – você vai achar enriquecedoras algumas considerações sobre a "força do ego". Essa força tem três níveis:
Nível 1 – Neste nível – impulsivo, máximo na psicose – o ego é tão fraco que, se o sujeito entrar em contato com um desejo ou uma emoção, deixa-se invadir e dominar por eles, expressando-os sem controle, sob formas que podem ser gravíssimas – alucinações, delírios e comportamentos altamente desadaptados. Ilustro com um diálogo:
PACIENTE: – De vez em quando, tem passado rapidamente por minha cabeça uns pensamentos agressivos em relação a meu pai.
LC: – Ué, deixa vir.
PACIENTE: – Não deixo, não.
LC: – Por quê?
PACIENTE: – Porque se eu deixar, eu faço.
A paciente já tinha sido vítima de surtos psicóticos. No último deles, ocorrido em plena madrugada, uma voz lhe ordenou que fosse até a cozinha, pegasse um facão e o enfiasse nos pais, que dormiam. Alguma coisa dentro dela se opôs a isso e a voz disse que, sendo assim, ela teria que tirar toda a roupa e sair nua pela avenida onde morava, o que ela fez, sendo presa por PMs e levada para o Pinel. Acontece que, há mais de ano, eu não a estava atendendo mais no hospital, mas sim, em minha clínica, onde não costumo atender pacientes graves, sendo, ademais, que, à época da sessão, a paciente já estava bastante bem. Imagino que foram esses dois fatores que me levaram a cometer o deslise de propor a uma paciente com um ego fraquíssimo que desse rédea solta aos pensamentos agressivos que abrigava em relação a seu pai. Se a paciente, naquele momento, não tivesse tido mais juízo do que eu e me "puxado a orelha" a tempo, minha intervenção poderia ter tido conseqüências bastante nocivas.
Embora, certamente, você não seja nem jamais tenha sido psicótico, quando você era avassalado pelo choro em sua escola, a força de seu ego, pelo menos no que diz respeito ao choro, se encontrava nesse primeiro nível.
Nível 2 – Neste nível – repressor, típico da neurose – o ego consegue controlar seus impulsos e emoções À CUSTA DE ROMPER DE FORMA RADICAL SEU CONTATO COM ELES. A paciente a que me referi estava bem quando ocorreu o diálogo que acabei de transcrever porque seu ego estava começando a se estabilizar – mas não o suficiente ainda – nesse segundo nível, neurótico, de força, mas essa estabilidade ainda não era sólida o suficiente para que o contato com seus impulsos parricidas não a jogassem de volta ao nível anterior. Acho provável que, no que diz respeito ao assunto "choro", você tenha passado do Nível 1 para o Nível 2 de força do ego, quando "só com muita força de vontade" conseguiu dominá-lo.
Nível 3 – Neste nível – integrador, típico da saúde psicológica – o ego consegue controlar seus impulsos e emoções SEM TER QUE EFETUAR UM ROMPIMENTO RADICAL, como o que tipifica o nível anterior. Pode dar acesso ou bloquear o acesso desses impulsos e emoções tanto à consciência quanto ao comportamento, conforme as circunstâncias o exigirem. Ilustro com um episódio que ocorreu comigo e, sendo eu, como você sabe, um bom gaiato, embora triste, ficou com um toque cômico:
Eu estava, um domingo pela manhã, em Paquetá, com uma amiga – vou chamá-la de Tânia aqui. Poucos dias antes, havia ocorrido um episódio que me deixara profundamente triste e inconformado: uma perda absurda, dessas completamente desnecessárias, nascida da mera leviandade com que se tratara um assunto extremamente grave, isso a despeito de eu haver alertado repetidas vezes as pessoas envolvidas dos riscos potenciais da situação em pauta. Eu não podia pensar no assunto que as lágrimas vinham a meus olhos junto a uma profunda dor e eu sabia que só eu impediria que aquela dor se transformasse em um trauma se desse a mim mesmo a oportunidade de chorar muito e durante um bom tempo. Por volta de meio-dia, eu estava sentado na varanda de minha casa, em silêncio, olhando para lugar nenhum, quando Tânia se aproximou.
TÂNIA: – Você está precisando falar e chorar mais um pouco?
LC: – Estou, mas não agora. A barca para o Rio sai às 17hs. Temos que ir ao supermercado comprar alguma coisa, voltar para casa, preparar o almoço e depois comer e, quem sabe, descansar um pouco. As três horas eu levanto e choro até às 16hs, aí arrumamos as coisas e pegamos a barca das cinco.
TÂNIA: – Você está MARCANDO HORA para chorar?
LC: – Isso.
TÂNIA (me olhando como se eu fosse um iéti, o abominável homem das neves, ou, quem sabe, um hipopótamo azul): – Você é mesmo uma figura, hein!
Devo ser mesmo. Porque fui ao supermercado, voltei, ajudei a fazer o almoço, comi – nada disso, naturalmente, de alma leve, mas sem chorar – descancei um pouco, pus o despertador para as três, levantei-me quando ele tocou e, durante uma hora, voltei ao assunto com minha acolhedora amiga, falando aos soluços, tomado por um pranto convulsivo e sentindo intensa dor. Às quatro, disse: "Chega!". Arrumamos nossas coisas e fomos pegar a barca. Eu ainda inevitavelmente triste, mas indiscutivelmente aliviado.
Esse, naturalmente, é um exemplo extremo – como a psicose é um exemplo extremo do primeiro – do terceiro e último nível de força do ego, mas expõe sua característica principal: a possibilidade de entrarmos em contato com nossas emoções e nossos desejos, sem permitir que eles nos tomem de assalto, destruindo a nossa vida real.