por Roberto Goldkorn
Muita gente por uma curiosidade natural me pergunta quando comecei a minha carreira de “guru”.
No começo localizava esse debut na inauguração de minha vida profissional. Depois fui recuando mais até chegar no colégio onde me vi sendo o conselheiro sentimental das minhas colegas ao invés de namorá-las.
Mas hoje percebo que minha estreia definitiva nesse caminho de vida – que meio escolhi, meio escolheram para mim – foi com Clarice Lispector – leia mais.
Na verdade conheci duas “Clarices”. Na Faculdade de Letras da UFRG fiz cursos sobre ela e sua literatura.
Alguns anos depois o segundo encontro: dessa vez com a pessoa de Clarice, e com o universo pessoal que ela arrastava junto consigo.
As circusntâncias de nosso segundo encontro não interessam aqui, e sim o fato de que me tornei em tempo recorde seu “guru” (não remunerado diga-se de passagem) e em tempo também recorde abandonei o barco lispectoriano.
Passado os primeiros instantes de deslumbramento do adorador diante de sua deusa, me vi diante de uma mulher. Densa – sim, complexa e ramificada em diferentes profundidades como sua obra (e mais), mas acima de tudo de uma fragilidade chocante. Quantas vezes Clarice me ligou em prantos por que uma “amiga” a havia magoado aconselhando-a a se “aposentar” e abrir caminho para a nova safra de escritoras, na qual ela (a amiga) se incluia.
Já disse que Clarice era densa, mas isso para ela ainda era pouco, ela precisava se cercar de uma ambiência densa, com os veios da fumaça de seus infinitos cigarros ainda pairando no ar como se não quisessem abandonar o fole de sua deusa vulcânica.
Clarice gostava do fogo, a brasa de seus cigarros e as chamas de suas velas que pareciam existir desde sempre eram suas “tochas que ardiam mas não alumiavam”, mas desprezava o sol. Aliás, tinha pavor do sol como se fora uma legítima descendente do Conde Drácula.
Clarice acreditava que precisava daquela atmosfera nosferatiana para criar. Ela se impunha esse mundo de sombras sem luz porque achava que ali, como no negrume da terra, germinaria sua melhor inspiração literária.
Eu ouvia Clarice, seus desabafos, mas petulante, cheio de energia solar dos 28 anos, vi na deusa da literatura apenas uma mulher amedrontada, frágil que precisava ser resgatada das garras dos mestres dos abismos para a vida.
Consegui fazer Clarice rir algumas vezes.
Por duas ou três vezes consegui fazer com que não acendesse um cigarro no outro.
Mas não consegui levar Clarice para andar no calçadão de Copacabana e quando abusadamente abri uma das pesadas cortinas mega, ultra blackout, ela com um ganido de horror correu para fechá-la. Clarice não me permitiu deixar o Sol entrar em sua vida. Talvez achasse que o sol era banal demais, transformava tudo em coisas reais. Ela criava a partir das névoas de seu próprio pântano.
Nossos papos dariam um livreto fantástico, viajávamos nas loucuras de ambos, fofocávamos como adolescentes sapecas, falávamos de filosofia e de banalidades. Cheguei até a contar-lhe algumas piadas picantes.
Mas o sol… esse nunca foi autorizado.
Eu como terapeuta diletante que ainda (nem sabia que) era, tentava enredá-la com minha conversa para embalar Clarice na vã esperança de enganá-la e fazer com que apagasse as velas, abandonasse os cigarros e puxasse as cortinas.
Mas Clarice tinha algo de lobo e coruja, era esperta como animal que aprendeu a sobreviver nos ambinetes mais hostis, e para ela o sol, a claridade, os risos infantis, as ondas e os surfistas sarados eram hostis.
Clarice odiava o cotidiano. Clarice temia a empregada que fazia compras na venda do seu Antônio como o vampiro teme a cruz (mentira não teme não).
Na arrogância da minha pouca experiência com Clarice s, julguei-me um paladino na cruzada pela salvação da mulher Clarice , certo de que isso não mataria a Clarice Lispector.
Mas Clarice Lispector não era (e não é) para inciantes.
Como todo bom guru deve ter um faro para encontrar a saída do labirinto em que se meteu, eu piquei a minha mula. Abandonei o barco, desisti de Clarice , da mulher que se enterrou ainda em vida, e achava que seria sempre resgatada pela sua obra.
Não dei conta daquele peso, não estava preparado para bailar com ela essa contradança lúgubre sem me deixar arrastar para as profundezas onde ela vivia com certo conforto.
Sou animal do sol. Imaginem que um dia antes de ser preso pelos órgãos de segurança da ditadura em 1969, estava praticando surf em Ipanema: um revolucionário surfista!
Abandonei Clarice porque não consegui respeitar a decisão dela e ao mesmo tempo não suportei o peso de tudo aquilo que ela criou em função dessa decisão.
O universo, o espaço físico de Clarice era um mar profundo onde ela nadava à vontade – para mim significava o afogamento – a asfixia.
Ela se movia com a ausência de pressa das volutas fumacentas de seus cigarros vagarosos. Eu tinha a urgência e o imediatismo dos jovens ansiosos. Ela era a noite de lua nova e eu o sol do meio dia. Não podia funcionar.
Hoje às vezes me pego pensando em Clarice e lembro da frase que melhor resume a nossa breve relação:
“A vida é a arte do encontro, pena que exista tanto desencontro pela vida.”
Vinicius de Moraes.