Cocaína e Rivotril®: uma bomba-relógio

Drogas da classe farmacológica Benzodiazepínicos, como é o caso do clonazepam (Rivotril®), são, geralmente, mal utilizadas ou diversificadas para fins não médicos, pois podem causar um efeito desacelerador no usuário de psicoestimulantes (cocaína).

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“Fui viciado em cocaína e maconha, mas consegui largar há cinco anos e hoje frequento o NA. Mas de um mês para cá, passei a ter crises na qual o meu coração dispara e eu sinto muito medo. Acho que estou com síndrome do pânico, só consigo me acalmar tomando 6 comprimidos de Rivotril® de 2mg de uma vez só. O que uma pessoa nessa condição precisa fazer? Caso possam me dar alguma orientação, ficarei muito grato.”

Resposta: O uso indevido de medicamentos prescritos tem se tornado cada vez mais popular. A automedicação para os Transtornos do Sono, outros Transtornos Psiquiátricos ou até mesmo tentativas para neutralizar os efeitos colaterais disfóricos de drogas psicoativas são alguns dos motivos para essa prática. O clonazepam, um benzodiazepínico que é prescrito por médicos a partir de indicações rigorosas, tem sido cada vez mais utilizado pelos usuários como uma contramedida aos efeitos colaterais da cocaína, incluindo redução do sono e ansiedade (1).

Antes de discutirmos alguns pontos da sua pergunta, devo considerar que, apesar de você ter cessado o uso de cocaína e maconha, você, aparentemente, está fazendo uso excessivo de clonazepam. Isso é mais um problema com o qual precisa lidar, procurando auxílio médico psiquiátrico especializado. Em primeiro lugar, o médico deverá fornecer o auxílio necessário para o estabelecimento de um diagnóstico adequado; em segundo lugar, após a realização do diagnóstico (ou dos diagnósticos), uma proposta terapêutica deverá ser apresentada.

Neste momento, vou discutir sobre arritmias cardíacas que podem surgir com o consumo intensivo de cocaína. Tenha em mente que um exame cardiológico rigoroso entre usuários de cocaína deve ser indispensável, mesmo que um Transtorno de Ansiedade coexista.

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Cocaína no cérebro

No sistema nervoso central, as substâncias estimulantes interagem com neurônios monoaminérgicos, incluindo dopamina, serotonina e noradrenalina. Os terminais pré-sinápticos desses neurônios expressam várias proteínas e algumas delas transportam os neurotransmissores do espaço extracelular de volta para o citoplasma da célula disparadora, impedindo a transmissão de um neurônio para o outro.

Substâncias que interagem com esses transportadores específicos, impedindo o retorno das neurosubstâncias para o citoplasma da célula disparadora, são classificadas como inibidoras de recaptura, devido ao seu mecanismo de ação.

A cocaína é um inibidor não seletivo de todos os três transportadores de monoaminas. Contudo, os efeitos comportamentais da cocaína que estão relacionados ao desenvolvimento do abuso são, sobretudo, atribuídos às ações no Transportador de Dopamina (DAT). Estudos de neuroimagem entre usuários de cocaína indicam que altos níveis de “ocupação” do DAT estão relacionados à magnitude do “high” após a administração da cocaína.

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Cocaína e coração

Além do coração, a cocaína causa inúmeras complicações em diferentes sistemas orgânicos:

a) Cardíaco: isquemia miocárdica, espasmo da artéria coronária, infarto agudo do miocárdio (IM), aterosclerose, miocardite, cardiomiopatia, arritmia, hipertensão e endocardite
b) Vascular: dissecção e ruptura aórtica, vasculite
c) Gastrointestinal: isquemia mesentérica ou infarto, perfuração
d) Pulmonar: edema pulmonar, infarto pulmonar e hemoptise (tosse com sangue)
e) Geniturinário e obstétrico: infarto renal e testicular, descolamento prematuro da placenta, aborto espontâneo, prematuridade e retardo de crescimento
f) Neurológico: convulsões, enxaqueca, infarto cerebral e hemorragia intracraniana
g) Musculoesqueléticas e dermatológicas: rabdomiólise, isquemia cutânea, trombose venosa superficial e profunda e tromboflebite (2).

A capacidade das drogas estimulantes de iniciar arritmias cardíacas é extremamente poderosa, o que decorre, em parte, da propensão de afetar diretamente a expressão ou a função dos canais iônicos cardíacos.

A cocaína pode produzir remodelação elétrica alterando as propriedades de abertura dos canais iônicos cardíacos. A droga inibe canais de sódio no tecido cardíaco, o que é intensificado quando o abuso da cocaína é feito juntamente com o uso de bebidas alcoólicas.

Semelhantemente aos efeitos nos canais de sódio, o abuso de cocaína ou mesmo o uso de cocaína com álcool exacerba a inibição dos canais de potássio.

Efeitos da cocaína no bloqueio dos canais de potássio resultam em:

a) Prolongamento do intervalo QT (durante a atividade elétrica cardíaca)
b) Despolarização precoce
c) Taquiarritmia ventricular (3).

Vários estudos mostram que o uso de cocaína está associado com condições cardiovasculares crônicas, como cardiomiopatia (por exemplo, hipertrofia do Ventrículo Esquerdo), aterosclerose subclínica e Doença Arterial Crônica (DAC).

Em resumo, entre aqueles que fizeram uso prolongado de cocaína, estudos têm mostrado aumento do índice de massa do Ventrículo Esquerdo (VE), alterações subclínicas no funcionamento das artérias coronarianas e maior formação de placas de ateroma nas artérias referidas.

Além disso, a cocaína estimula a liberação de uma substância chamada endotelina-1, um potente vasoconstritor, e inibe a produção de óxido nítrico, principal vasodilatador produzido pelas células endoteliais. A cocaína promove trombose por ativação de plaquetas, aumentando a agregação plaquetária, aumentando a liberação de grânulos alfa plaquetários, recrudescendo a atividade do inibidor do ativador do plasminogênio e alargando os níveis de fibrinogênio e outros fatores relacionados à coagulação. De fato, calcificação e aneurismas ocorrem com frequência nas artérias coronárias de usuários de cocaína.

O infarto do miocárdio em pacientes não usuários de cocaína com fatores de risco tradicionais (obesidade, hipertensão arterial sistêmica) geralmente resulta de fissura ou ruptura da placa com hemorragia da placa, que precipita a trombose. Em contraste, o infarto do miocárdio em pacientes usuários de cocaína envolve trombose coronária sobreposta às placas fibrosas ricas em células musculares lisas sem ruptura de placa ou hemorragia (4).

Uso prolongado de cocaína: uma bomba-relógio

Juntando todas as alterações que foram apontadas acima e que são delongadas, estamos diante de uma bomba-relógio entre aqueles que usam ou fizeram uso prolongado da droga.

Isso, por si só, justificaria a presença de alterações eletrocardiográficas e, subsequentemente, sintomas de nota.

Cocaína e Clonazepam (Rivotril®)

As drogas da classe farmacológica Benzodiazepínicos, como é o caso do clonazepam, são, geralmente, mal utilizadas ou diversificadas para fins não médicos, pois podem causar um efeito desacelerador no usuário de psicoestimulantes (cocaína).

Os benzodiazepínicos podem ser combinados com uma droga estimulante, como a cocaína, na tentativa de neutralizar alguns dos efeitos de agitação e taquicardia provocados pelos psicoestimulantes. Os indivíduos também podem misturar cocaína e clonazepam para aumentar ou mesmo prolongar o estado de euforia e facilitar a continuidade do consumo da cocaína, o que pode mascarar um iminente estado de overdose.

Além disso, ambos cocaína e benzodiazepínicos agem, direta ou indiretamente, em diversos sistemas de neurotransmissores, além dos já mencionados, incluindo a orexina e a adenosina. Ambos os sistemas citados estão envolvidos com o padrão de sono e de fome. É possível que as alterações nestes sistemas sejam também prolongadas e que os benzodiazepínicos exerçam atividades diferentes das pretendidas, mesmo quando usados para fins terapêuticos.

Além disso, a retirada das medicações da classe farmacológica Benzodiazepínicos deve ser feita com cautela entre aqueles que fazem uso prolongado, com o objetivo de evitar consequências adversas e graves de uma síndrome de abstinência complicada.

Você já deve ter percebido, ao longo do texto, que a melhor opção é a procura por um médico psiquiatra especializado, de forma urgente.

Não perca mais tempo.

Referências:

  1. Chen DH, Kolossváry M, Chen S, Lai H, Yeh HC, Lai S. Long-term cocaine use is associated with increased coronary plaque burden – a pilot study. Am J Drug Alcohol Abuse. 2020;46(6):805-11.
  2. Egred M, Davis GK. Cocaine and the heart. Postgrad Med J. 2005;81(959):568-71.
  3. Kim ST, Park T. Acute and Chronic Effects of Cocaine on Cardiovascular Health. Int J Mol Sci. 2019;20(3).
  4. Schwartz BG, Rezkalla S, Kloner RA. Cardiovascular effects of cocaine. Circulation. 2010;122(24):2558-69

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.