Cocaína: meu filhinho dá cabeçada e morde

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“Boa noite doutor, sou dependente químico. Há uns 28 anos, uso cocaína e tenho um filho de 1 ano e 9 meses. Ele está tendo uns comportamentos agressivos: dá cabeçada ou morde… Eu queria saber se pode ser sequela da minha dependência?”

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Resposta: De fato, pesquisas sobre os possíveis efeitos adversos do uso de álcool e de outras substâncias psicoativas pela mãe sobre o feto durante a gravidez têm vicejado nos gêneros textuais médicos especializados. Em contraste, o efeito do consumo dessas substâncias pelo pai sobre o feto, especialmente quando a mãe não faz uso de substâncias, tem sido menos investigado.

Apesar disso, existem algumas evidências de que o consumo de substâncias psicoativas pelo pai, como a cocaína, pode interferir no desenvolvimento físico, cognitivo e comportamental dos bebês.

Alguns estudos têm demonstrado que:

a) após controlar (nas análises) os efeitos do consumo de álcool e de outras drogas pela mãe sobre o feto, o consumo de drogas pelo pai é também significativamente relacionado com prejuízos no desenvolvimento cognitivo da criança

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b) filhos de pai alcoolista e/ou usuário de outras substâncias podem apresentar menores escores em testes de memória, habilidade visuais e espaciais, e linguagem.

Em outras palavras, e por mecanismos ainda não plenamente esclarecidos, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e/ou outras substâncias, como cocaína/crack, pelo pai afeta negativamente o feto tanto em termos comportamentais quanto cognitivos, mesmo quando a mãe não utiliza substâncias. Prejuízos de memória, linguagem, desempenho acadêmico e atenção têm sido observados entre filhos de pai alcoolista.

Outros estudos têm verificado que pais usuários crônicos de cocaína podem apresentar alguns defeitos nos espermatozoides, como redução da mobilidade, diminuição da produção e maior risco de anormalidades morfológicas. Alguns estudos experimentais, realizado em ratos, têm mostrado que ratos (machos) que fizeram uso de cocaína cronicamente podem gerar uma prole com baixo peso e tamanho, além de aumentar o risco de morte neonatal. Mas, repetindo, esse estudo foi experimental. Trata-se de assunto bastante vasto, onde inúmeras variáveis podem interagir promovendo um resultado bastante insatisfatório.

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Consequências comportamentais geradas pelo uso de drogas 

Dentre estas “inúmeras variáveis”, os fatores ambientais devem sempre ser levados em consideração, visto que é muito difícil formular uma explicação uni-causal para a associação entre “uso de substâncias pelo genitor” e “problemas comportamentais e cognitivos” nos filhos. Alguns autores têm apontado que os filhos de pai usuário de álcool e/ou outras substâncias, durante a gestação, sofrem várias influências ambientais e sociais negativas, tais como:

a) estresse da mãe

b) exposição da mãe às drogas

c) inadequado suporte do pai durante a gestação

d) maior desgaste físico e psicológico da mãe

e) maior chance de comportamentos agressivos pelo pai

f) maior risco de complicações legais pelo usuário

g) várias dificuldades relacionais entre o pai e a mãe

h) vínculos familiares disfuncionais.

Tudo isso, seguramente, afeta o período da gestação. Outrossim, fatores genéticos também devem ser considerados aqui. Alguns autores aventam que filhos de pai com dependência química apresentam maior chance de desenvolver quadro clínico de dependência química no futuro e, muitas vezes, alterações comportamentais e cognitivas discretas podem ser vislumbradas na infância.

Somando aos fatos reportados acima, ou seja, influência direta e indireta do consumo de substâncias psicoativas pelo pai sobre a saúde da criança, devemos considerar também que muitos usuários de substâncias apresentam uma notável variabilidade de problemas psicopatológicos (depressão, ansiedade, problemas de personalidade) que têm seus fundamentos genéticos. Por exemplo, um estudo tem sugerido que filhos de pai dependente químico estão em maior risco de demonstrar problemas de conduta (ser desafiador, agressivo, desrespeitoso quanto às regras sociais, carente em empatia afetiva) quando o genitor e/ou a gestante também portam outros transtornos psiquiátricos concomitantes (como depressão e ansiedade). Entre 50 e 60% dos usuários problemáticos de cocaína apresentam sintomas de outros transtornos psiquiátricos.



Atribuir culpa a si, não é muito útil agora 

A sua pergunta parece refletir uma preocupação genuína a respeito do comportamento do seu filho. Neste momento, não acredito que atribuir a responsabilidade pelo comportamento preocupante da criança a si mesmo seja a ideia mais útil agora. Você deve levar seu filho para um especialista (psiquiatra da infância e da adolescência ou mesmo neurologista infantil) para que o seu filho possa ser adequadamente avaliado e, havendo anormalidades comportamentais constatáveis, diagnosticado e tratado a contento.

Atribuir responsabilidades e culpas, neste momento, não vai promover a saúde do seu filho. Todavia, esta atribuição de responsabilidade e culpa pode impulsionar você a manter um tratamento específico para dependentes químicos, objetivando a manutenção da abstinência e melhorar a sua qualidade de vida  e a dos que você preza.

Em resumo, modelos correlacionais têm mostrado que um ambiente familiar disfuncional medeia o relacionamento entre o uso de substâncias psicoativas pelo pai e os possíveis problemas comportamentais da criança.

Observe o modelo de correlação proposto abaixo:

Problemas na prole

                ↑

Ambiente disfuncional familiar

                ↑

Pai usuário de substâncias – cocaína  

↑                           ↑                    ↑                        

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