por Monica Aiub
A pergunta que encerra o texto anterior (clique aqui e leia) diz respeito a como estabelecer e atualizar critérios para avaliar a qualidade de nossas vidas. Como você faz isso? Com base em que você define o que é uma vida de qualidade?
Iniciemos por um exame do conceito de qualidade. O que é qualidade? Se buscarmos uma definição, encontraremos diferentes acepções, tantas que teremos grande dificuldade em reduzi-las a um único conceito. Em seu sentido mais amplo, qualidade é o que individualiza, caracteriza um objeto. Se assim compreendermos, uma vida de qualidade será aquela que mais se aproximar da caracterização própria de cada um, da distinção, da individualização, da singularização. Como seria, nesse caso, a sua qualidade? O que lhe distingue como ser humano? Como pessoa? Como indivíduo? O que o torna único?
Se considerarmos o aspecto proposto, ao mesmo tempo em que a qualidade nos categoriza nos grupos aos quais pertencemos, também nos diferencia, destacando o que nos é peculiar. Nesse sentido, qual a sua qualidade? A que grupo ou grupos você pertence? O que lhe identifica e o que lhe diferencia dos demais?
Uma das primeiras referências filosóficas ao conceito de qualidade encontra-se em Aristóteles, em especial em Metafísica e em Categorias. Ele distingue quatro grupos de qualidades, dos quais nos interessará para tratar a questão da qualidade de vida, o primeiro, por se referir a hábitos e disposições. Por hábito ele compreende algo mais duradouro, como, por exemplo, as virtudes. Disposições são compreendidas como sinônimo de estados, como saúde e doença. Quais são os hábitos e disposições frequentes em seu cotidiano? Quais hábitos você cultiva?
Em Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta virtudes e vícios em oposição, considerando virtudes como hábitos racionais, que nos aproximam de nossa finalidade. Em contraposição, os vícios nos afastam de nosso objetivo maior, nos distanciando da felicidade, que segundo ele é a finalidade humana.
Embora, na Ética, Aristóteles trate do equilíbrio entre o singular e o coletivo; embora seu conceito de justa medida não corresponda a uma medida exata, ele considera a existência de um equilíbrio natural, pautado por uma lei universal da natureza, que deve ser conhecida para orientar nossas ações, servindo de parâmetro para a ação virtuosa.
Obviamente, como cada um de nós, em cada contexto, necessita de posicionamentos e ações distintos para atingir suas também distintas finalidades (embora a finalidade última seja a felicidade), não há prescrições de melhores ou piores ações em si, não há uma métrica perfeita para desenvolver virtudes. Há, no texto aristotélico, apenas o indicativo da busca pela justa medida: nem falta, nem excesso, o meio-termo, que varia de acordo com os elementos circunstanciais.
A saída, nesse caso, seria conhecermos a nós mesmos e a nossas necessidades, conhecermos também o universo no qual nos inserimos, e buscarmos as formas mais equilibradas (nem excesso, nem falta) para orientar nossas ações. Por isso ele considera a virtude como um hábito racional.
Seus hábitos são, em sua maioria, racionais? Pergunto se você pensa sobre eles, se os escolheu, se avaliou os motivos pelos quais deve ou não cultivá-los. Imagine a seguinte situação: diante de um contexto, eu escolho, com base no conhecimento sobre minhas necessidades e sobre as necessidades do meio onde estou inserida, o que considero ser a prática mais adequada para lidar com uma questão. Avalio os motivos, as causas, as possíveis consequências, tanto para mim quanto para meu entorno. Escolho racional e conscientemente. Mas fiz isto uma única vez, e como considerei minha escolha inquestionavelmente adequada, passo a repeti-la em outras situações similares, que envolvem os mesmos elementos em questão. Isto seria um hábito racional?
Poderíamos afirmar que o processo inicial resultou num hábito racional, mas tal hábito deixou de ser racional na medida em que passou a ser utilizado sem reflexão, foi incorporado de maneira automatizada, através de um processo de generalização da solução, aplicando-a a quaisquer situações similares. Contudo, para ser um hábito racional, ainda que a escolha se repetisse, seria necessário repassar o processo, rever o percurso, a fim de verificar se algo foi negligenciado anteriormente, se uma nova possibilidade foi criada, se essa solução ainda atende às necessidades, tanto internas quanto externas, enfim, um processo de atualização dos critérios que validaram a escolha inicial.
Tudo isso seria, ainda, excessivamente aristotélico. Aprofundemos um pouco mais a questão. Avalie seus hábitos. Eles têm origem em decisões racionais ou são outros os fatores que os originam? Sempre que você se dispõe a tomar decisões racionalmente, você consegue? Como são os resultados?
Algumas pessoas responderão “sim” às questões do parágrafo anterior. Fazendo uma análise de seus hábitos identificam origens racionais, com decisões que são precisamente cumpridas e excelentes resultados obtidos ao final do processo. Outras responderão “não”: seus hábitos possuem outras origens – emocionais, culturais, políticas, por exemplo; outras dirão que apesar de decidirem racionalmente, não conseguem cumprir suas próprias decisões, sendo seus hábitos exatamente o oposto daquilo que decidiram para si. Outras, ainda, responderão que “às vezes sim, outras vezes não”.
Você já adquiriu um hábito para ser aceito socialmente? Já desenvolveu algum hábito provocado por emoções, como medo, ansiedade, paixão, inveja, desejo, etc? Já descobriu um hábito que não havia percebido, que não lembra desde quando o possui, mas sabe que teve origem numa herança familiar?
Se sua resposta for afirmativa, não significa que você jamais conseguirá atingir uma vida de qualidade. Talvez você já a tenha, talvez falte pouco para atingi-la, talvez você esteja bem longe dela. Tudo dependerá então, sendo ainda muitíssimo aristotélica, de conhecer suas necessidades, como você funciona, como aprende, exercita, vivencia seus hábitos. Dependerá, também, de você conhecer o mundo a sua volta: quais as necessidades de sua sociedade, dos outros com quem convive, dos ambientes que frequenta, e buscar formas de equilíbrio. Não um equilíbrio estático, mas um equilíbrio em constante movimento.
Mas é importante ressaltar que não se trata de um processo de adaptação: conhecer a realidade e os modos de cultivar hábitos para adaptar-se a ela, até porque muitas vezes nosso entorno possui características que tornam nossas vidas inviáveis, em alguns casos até a vida humana inviável. Como avaliar? Novamente, conhecimento das possibilidades, avaliação de possíveis consequências. Contudo, não há como termos certezas inquestionáveis, como estabelecermos fórmulas, ainda que estas sejam construídas para nós. É preciso acompanhar os movimentos da vida, da sociedade, dos contextos nos quais vivemos, e reformular, transformar, transmutar nossa própria existência a cada instante.
Agora imagine esse processo num mundo caótico, que não é regido por leis naturais, mas por leis estabelecidas por consenso social. Ficou mais fácil ou mais difícil estabelecer e atualizar os critérios? O que considerar agora? O proposto no parágrafo anterior também vale para um universo caótico? Como você compreende o universo no qual vive?
Referências Bibliográficas:
ARISTÓTELES. Categorias. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
_____. Ética a Nicômacos. Brasília: UNB, 1985.
_____. Metafísica. Porto Alegre: Edipro, 2005.