Por Patrícia Gebrim
É difícil dizer, exatamente, em que momento de minha vida comecei a sentir essa incômoda necessidade de saber a razão de minha existência. A sensação é a de que esse questionamento sempre fez parte de mim.
Quando criança me lembro de que todos os fins de semana viajávamos, eu e meus pais, para nossa casa de praia em Ubatuba. Naquele tempo quase não existiam outras casas naquela região e a natureza nos acolhia como uma mãe protetora, generosa e sedenta por seus filhos. Meu pai possuía um pequeno barco. Costumávamos sair bem cedo para explorar a costa, os cachorros iam conosco. Para fugir das patas cheias de unhas afiadas, eu abria mão do conforto dos bancos almofadados e optava por me sentar lá na proa do barco. Com os pés pendurados sobre a água, segurava-me na corda da âncora e tentava me equilibrar à medida que o barco subia e descia no vai e vem das ondas, as pernas balançando perigosamente sobre o oceano. Até hoje não sei como permitiam que eu fizesse aquilo, mas eu adorava aquela sensação de voar sobre o mar azulado, muitas vezes revolto.
Sempre tive uma imaginação viva, era como se vivesse em dois mundos. O mundo real, das experiências que se desenrolavam minuto a minuto, e um mundo interno, imaginário, colorido e mágico. No mundo real eu passeava de barco. No mundo mágico da minha imaginação eu voava sobre as águas, como os peixes voadores que vez ou outra saltavam brilhantes ao lado do barco, causando alvoroço e alegria em todos nós.
Depois de uma ou duas horas, invariavelmente chegávamos a uma ilha, ou a uma praia deserta, cujo acesso só se dava pelo mar. Nunca me esquecerei da sensação deliciosa de tocar aquela vasta extensão de areia bem branquinha, sem uma pegada sequer, o lugar perfeito para derramar meu mundo imaginário. Naqueles passeios por praias desertas eu fui muitas coisas. Fui pirata, índia, desbravadora, extraterrestre, náufraga e o que quer mais que minha imaginação conseguisse pintar naquela brancura arenosa.
Ao final do dia, muitas vezes com estrelas cintilando sobre nossas cabeças, retornávamos para casa, exaustos, a pele queimada, mais salgados do que aqueles bacalhaus que ficam pendurados ao sol.
Após o banho eu estendia o colchonete no quintal da casa, me cobria com um lençol, protegendo-me do ar fresco da noite e dos pernilongos que zumbiam esfomeados ao meu redor, apagava as luzes e ficava horas olhando para o céu. Eram tantas as estrelas.
Eu me sentia muito pequena. Não há como não nos sentirmos pequenos frente à vastidão do Universo. Mais do que pequena, eu me sentia solitária. Entenda, estou falando de uma solidão inerente à condição humana. Por mais que estejamos acompanhados na vida, é solitário não saber o que estamos fazendo aqui. Não temos a quem perguntar isso, não há quem nos possa dar respostas a algumas das perguntas mais importantes da vida. É dessa solidão que falo.
Muitas pessoas reagem a isso deixando de perguntar. Para elas as estrelas são corpos celestes em movimento, muitos deles com trajetória e velocidade conhecidas. Simples assim. Não se permitem fazer perguntas para as quais não teriam respostas. Eu já desejei ser pragmática assim, seria mais fácil. Hoje em dia, já não me incomodo mais com o fato de não saber as respostas.
Compreendi que o simples fato de ter perguntas faz com que me sinta mais viva. É nessa parte de mim, que se cala ante o mistério, que pulsa o que tenho de melhor. É no silêncio de um céu estrelado que me sinto sendo o que mais sou.
Já passei por várias fases na busca de um significado maior para a minha vida. Hoje estou mais em paz com esse assunto. Acredito que cada pessoa tenha que encontrar por si mesmo algo que torne sua vida significativa. Aprendi com o tempo que às vezes a vida nos agarra e nos atira ao chão. É nesses momentos, quando nos sentimos subitamente jogados de encontro à aspereza do solo pedregoso, com o peso da existência comprimindo nossos ossos, nos fazendo ter vontade de chorar e deixar de viver, que a vida pode ganhar algum sentido. Quando surpreendemos a nós mesmos nos recusando a acreditar que sejamos meras vítimas, nossa vida ganha sentido.
Quando, mesmo exaustos e feridos, nos levantamos e seguimos em frente, nossa vida ganha sentido. Ouçam essa verdade. Muitas vezes as coisas não são como queremos. Mais vezes do que gostaríamos.
Planos não acontecem como imaginávamos, pessoas não agem como desejaríamos, pneus furam, voos são perdidos, aplicações financeiras não rendem o prometido, alguém vê a vaga no estacionamento antes de nós, a pessoa que amamos ama outro alguém, adoecemos no dia de nossa tão desejada viagem, e por aí vai.
A vida é feita de tudo isso também. De frustrações, de dores. Às vezes as coisas fluem como planejamos, mas nem sempre, e é nessa hora frustrante, em que tudo parece dar errado, que se esconde uma incrível oportunidade. A oportunidade de crescer, de virar gente grande, a oportunidade de dar um passo adiante e deixarmos de agir como crianças mimadas que esperam que tudo seja como desejamos, como planejamos em nosso mundo de fantasias.
Não, não é fácil, eu sei. Não é fácil lidar com a enorme frustração que se abate sobre nós nesses momentos. Seja compassivo e flexível. Seja gentil consigo mesmo. Não exija perfeição de si mesmo em um momento assim, afinal somos todos humanos.
Observe os sentimentos que afloram, como uma nascente que brota de um mar revolto e escuro, das suas entranhas, das suas sombras, do buraco negro que mora dentro de você. Talvez você se sinta perseguido ou atacado pela vida. Talvez seja tomado por uma profunda tristeza, ou sinta uma raiva ancestral. Talvez sinta um ódio profundo por si mesmo. Tudo bem. Observe tudo isso, observe esses sentimentos sombrios que também fazem parte de seu ser. Permita que eles fluam. Sinta-os em cada célula de seu corpo. Eles são uma parte sua, clamando por transformação. Acolha-os, aceite-os. Traga-os para a luz de sua consciência. Sinta, o que quer que estiver sentindo. Permita-se ser tudo o que é. Sinta-se vítima, o pior dos piores, sinta a tristeza, a raiva, o ódio… O que for.
Tranque-se em casa. Chore por uma semana. Coma doces até ficar com dor de barriga (se puder, pare um pouco antes), evite as pessoas, blasfeme. Sinta a presença da sua sombra, até que ela esteja bem perto de você, tão perto a ponto de você poder colocá-la em seu colo, naquele espaço sagrado, perto de seu coração.
Então a abrace, a envolva em seu amor, sua sabedoria, sua luz. Sinta compaixão por aquela parte sua, tão assustada e sombria. Respire fundo e aceite. Aceite o que quer que esteja lhe acontecendo. Aceite a si mesmo. Aceite sua sombra, sua feiura, seu medo, sua dor.
Quando você aceita, você dá um passo. Você para de gastar sua energia julgando sua experiência e passa a "criar" o momento seguinte da sua vida, e isso é a coisa mais linda e mágica que você pode fazer por si mesmo. Você caminha na direção do novo, do recomeço. Na direção da cura. Você cura a si mesmo. E no final você compreende que foi para isso que aquela dor teve que acontecer.
No meio da tormenta nos deparamos com uma escolha, podemos lutar até o final, ou entregar o barco ao senhor do temporal, afundando docemente como se não tivéssemos força para atravessar a fúria do mar revolto. Talvez não tenhamos, é verdade, mas podemos escolher lutar. A vida ganha significado quando superamos nossas limitações, quando nos descobrimos maiores e fazemos o que acreditamos que deveríamos fazer. Quando lutamos para honrar os valores luminosos que temos em nós, por mais improvável que seja nossa vitória.
Toda vez que, independente do panorama ao seu redor, você escolher permanecer no caminho da sua verdade interna, se sentirá mais em paz com tudo e com todos. Essa, talvez, seja uma boa forma de guiar a si mesmo pelo caminho que torna sua vida realmente válida e significativa.
Encontre o que faz sua vida valer a pena e seja fiel a si mesmo, é o único conselho que me permito oferecer neste momento.
Terminarei este livro compartilhando algo muito pessoal. Praticante de windsurf por muitos anos, tenho viva em minha memória os momentos em que uma rajada mais forte de vento inflava a vela, fazendo com que a pequena prancha deslizasse sobre a água com uma velocidade assustadora. A força do vento me transformava em uma frágil pena, que poderia ser soprada para fora da prancha a qualquer instante. Eu sentia medo, confesso, mas não desistia.
É verdade que muitas vezes era atirada com força para dentro da água. É também verdade ganhei muitos hematomas e arranhões, um preço que concordei em pagar de bom grado para viver o que escolhi. E é assim que quero viver minha vida. Ao chegar ao pôr do sol de minha vida, quero olhar para trás e sentir que fiz o meu melhor. Que não desisti. Que apesar do medo, segui acreditando. Em mim. Na vida. Na humanidade. Em você.
Se assim for, terá valido a pena.
Alguns me pressentem. Outros se ressentem e me chamam de ausência. Estou toda contida nessa ausência. Será que não percebem?
Extraído do livro de Patrícia Gebrim “Deixe a Selva para os leões – Inspirações para bem viver nos dias de hoje” – para ler capítulo anterior – clique aqui.