por Monica Aiub
Muitas das questões que surgem nos consultórios de filosofia clínica dizem respeito à convivência. Como conviver, como partilhar o mesmo mundo, como coexistir… parecem ser questões comumente encontradas na contemporaneidade. Mais especificamente, o que se coloca como problema é conviver com o diferente, com aquele que não pensa como eu, que não é como sou, que não quer viver como eu vivo.
É interessante observar que, durante a história da humanidade, a diferença já causou muito espanto, muito desentendimento, muitas guerras. Caminhamos, em nossa história, tentando anular, dizimar as diferenças, afirmando nossa igualdade a qualquer preço. Àqueles que por algum motivo qualquer não são vistos como iguais, esta história impôs a transformação, a dizimação, ou a exclusão da categoria de ser humano, permitindo escravizá-los, bani-los, matá-los, interditá-los. Este erro histórico já causou muitos males a muitas pessoas, enquanto, por outro lado, gerou muitos benefícios e lucros a outras. Talvez pelo benefício daqueles que se aproveitam de situações tão crueis, prossigamos, ainda, com os preconceitos que nos impedem de conviver, de aceitar que o outro simplesmente seja diferente de nós.
Por outro lado, é exatamente o diferente que nos faz questionar nossas crenças, que nos provoca a pensar em formas distintas de viver, que nos ensina algo além daquilo que nossos limites existenciais nos impõem. Quantas vezes ampliamos nossos horizontes, criamos novas possibilidades, descobrimos mundos que nos eram desconhecidos, porque alguém simplesmente esteve presente em nossas vidas, e nos provocou a ver o que jamais havíamos visto? A pensar no que jamais havíamos pensado?
Quantas vezes você já se perguntou sobre o que é este mundo no qual você vive, e quais as possibilidades de vida que nele existem? Mais do que observar a diversidade e a legitimidade destas diversas formas, a questão que trago aqui é o direito de viver, de ser aquilo que se é, mas sê-lo no convívio com o outro, na partilha das diferentes formas de viver.
A ideia de unidade é ilusória. Por mais que tenhamos semelhanças, somos seres singulares. Não se trata da defesa do individualismo, ao contrário, trata-se de constatar nossas diferenças, respeitá-las e conviver com elas, respeitando o outro em seu modo de ser, encontrando formas de convívio. E isto não se dá individualmente, num pensar solitário e isolado do mundo, dá-se no diálogo, no convívio, na compreensão e na construção da vida em relação, junto com o outro. Não é possível pensar sobre a vida coletiva isoladamente; nem é possível que alguns poucos definam como deve ser a vida de todos, ou quais as melhores formas de vida e convívio.
Por isso optamos viver numa democracia, onde o critério é a escolha da maioria. Temos direito a voz e voto, temos direito à participação.
Nas últimas semanas, muitas foram as questões, no consultório, que se relacionaram às eleições. Não necessariamente a escolha de um ou de outro candidato, mas a intolerância e o desrespeito por parte de muitos eleitores que trataram pessoas que pensam de modo diferente deles com extrema violência, a ponto de alguns ofenderem amigos, terminarem a amizade, agredirem verbalmente e, em casos extremos, agredirem fisicamente. Outros, inconformados por seu candidato não ter sido eleito, sugeriram separatismo, ditadura e outras formas que só demonstram a incapacidade de aceitar a democracia e a diferença.
A democracia não pode ser boa apenas quando todos pensam como eu penso. Ela é benéfica quando mostra que o outro pensa de modo diferente do meu, e garante que, ao invés de guerrearmos por isso, querendo impor nossa forma de ser e de pensar ao outro, possamos argumentar e ouvir o argumento do outro, compreendendo os motivos que o outro tem para pensar como pensa, assim como expor nossos motivos.
Não podemos esquecer que temos interesses diferentes também. Alguns defendem seu direito a viver, a dar condições de sobrevivência à sua família; outros defendem a sobrevivência e lucro de seus negócios e de seu patrimônio; outros defendem o direito de não estar inserido no sistema produtivo tal como se apresenta no modelo vigente, buscando formas alternativas. É preciso compreender que quando pensamos em sociedade, em vida em comum, é preciso garantir direitos mínimos a todos, e para tal, muitas vezes nossos interesse pessoais ficam em segundo plano. Essa é a característica básica de uma democracia justa, onde é preciso pensar no todo em primeiro lugar, pensar não somente no benefício pessoal, mas nos benefícios coletivos.
Não temos como sentir o que o outro sente, nem como viver o que o outro vive, mas podemos acompanhar seu relato, visitar seu universo. Este é o trabalho que desenvolvemos nos consultórios de filosofia clínica: conhecer o universo existencial do outro e pensar junto com ele. Não é o caso da defesa de posturas partidárias, religiosas, ideológicas, mas é o caso de pensar junto com o outro a partir de seus referenciais, e estes referenciais incluem o mundo no qual ele se insere, as pessoas com as quais convive, as consequências das ações cotidianas.
Pensar de modo mais amplo, sempre foi uma característica da filosofia: o olhar para os contextos, a compreensão das relações existentes entre os diversos pontos de vista, a abertura para outros olhares e possibilidades…
Pensar de modo contextualizado, também sempre foi característica da filosofia: é preciso compreender as questões em seus contextos, conhecer a história do problema, sua gênese e desenvolvimento, sua atualidade e suas implicações.
Pensar a política e a convivência não se dá de modo distinto. Não podemos tratar a política como torcedores fanáticos, nem como fundamentalistas, muito menos a partir de nossos próprios e únicos referenciais. É preciso um olhar mais amplo, mais abrangente. É preciso conhecer a história e o desenvolvimento das questões. Sem conhecimento sobre o que se vive, e porque se vive desta maneira, é muito difícil encontrar posicionamentos razoáveis, e muito fácil querer impor os próprios interesses e teorias a todas as pessoas indiscriminadamente.
Para conviver, é preciso, primeiramente, compreender que cohabitamos o mesmo mundo, ainda que tenhamos formas diferentes de lidar com ele, por isso nossas formas não podem destruí-lo. É preciso ter consciência de que a destruição do mundo no qual vivemos é a impossibilidade futura da vida. Também é preciso saber que o fato do outro ser diferente não implica na inviabilidade de meu modo de vida. Mais ainda, é preciso estar aberto para aprender com o outro, com a experiência do viver; ao mesmo tempo em que é preciso ter consciência da responsabilidade de cada uma de nossas ações neste mundo, ainda que nos permitamos ser conduzidos por outros, a responsabilidade nos pertence.
Não há receitas prontas para o convívio, não há soluções mágicas na política. A participação, o diálogo, o conhecimento, a reflexão, a compreensão são elementos fundamentais para a coexistência.
Um povo que guerreia entre si enfraquece, pois destrói seu território, sua população, suas riquezas. Certamente não é este povo quem se beneficia com estes resultados. A quem interessa que nos vejamos não como cidadãos que constroem um país, mas como inimigos uns dos outros? Quem se beneficia com isso? Quem lucra com a discriminação e a violência na sociedade? Penso que estas são perguntas que precisamos responder para que possamos orientar nossas ações. Mas antes delas, há outra, que me parece bem mais importante: De que modo queremos viver?