por Danilo Baltieri
"Sou estudante universitária de enfermagem, fui dependente química de dolantina, tive uma overdose e um coma por isso, depois fiquei quatro anos "limpa", voltei a usar drogas, só que então fentanil. Tinha facilidade, porque sou técnica em enfermagem e sempre atuei em centro cirúrgico, cheguei a um limite de fazer 80 ml de fentanil por dia, passei por crises horrorosas, foi quando decidi sair do hospital antes que morresse. Precisava de algo para amenizar as crises de abstinência, comecei a usar codeína, sou viciada até hoje. Tomo em média por dia 20 comprimidos e o dia que tento diminuir, tenho quadros horrorosos de diarreias, vômitos, calafrios, inquietação… Já tentei várias vezes reduzir aos poucos a codeína mas começam as diarreias e tudo o mais"
Resposta: Você descreve acima um quadro bastante típico de Síndrome de Dependência de Opioides. Os opioides (ópio, morfina, codeína, fentanyl, meperidina, heroína, oxicodona, hidroxicodona, oximorfona, hidroximorfona, tebaína, metadona, L-acetyl-Metadol) são substâncias com alto potencial para induzir quadros de dependência fisiológica. Embora alguns opioides sejam importantes medicações para uso clínico, desde que com indicação médica específica, o uso deve ser sempre monitorado por profissional altamente qualificado na matéria.
O uso de opioides é descrito desde tempos pré-históricos, sendo encontradas referências em documentos egípcios, gregos e persas há mais de 6 mil anos. A partir do século XIX, vários opioides foram sintetizados: em 1806, surgiu a morfina e, em 1832, a codeína. Mais de vinte alcaloides derivados do ópio foram descobertos rapidamente a partir do isolamento da morfina. Com a descoberta da agulha hipodérmica, neste mesmo século, o uso dos opioides via parenteral (injeção) tornou-se uma possibilidade atraente e, ao mesmo tempo, devastadora, uma vez que casos de dependência e de síndromes de abstinência começaram a se tornar problema de saúde pública.
Os opioides atuam no Sistema Nervoso Central e em outros órgãos, como o intestino. Há, pelo menos, quatro tipos de receptores específicos para os opioides, localizados, principalmente, em regiões sensorial, límbica e hipotalâmica, em amígdala e na região cinzenta periaquedutal cerebral, a saber:
1) Mu ( ) – o subtipo 1 é responsável pelos sintomas de analgesia, euforia e depressão respiratória; o subtipo 2 medeia efeitos gastrintestinais, como obstipação;
2) Kappa ( ) – medeia analgesia, sedação, miose (pupila contraída), disforia (sintomas de humor);
3) Delta ( ) – medeia analgesia e pode estar associado à mudanças de humor; e 4) Epsilon ( ) – pode estar associado à sedação.
Os quadros de intoxicação e de síndrome de abstinência são importantes complicações do uso de opioides.
Intoxicação:
A intoxicação por opioides pode ser acidental ou intencional. A tríade miose, depressão respiratória e coma sugere alta dosagem de opioides. Analgesia, sedação, sensação de prazer em baixo ventre (às vezes referido como sensação de orgasmo), sonolência excessiva, sintomas de despersonalização e desrealização estão comumente presentes na intoxicação. Alucinação é rara. Outros sintomas físicos que podem surgir são edema pulmonar, hipóxia (baixa oxigenação), hipotonia (diminuição da força e tônus muscular), hipotermia, pele fria e pegajosa, morte. Constitui quadro de emergência médica, devendo ser sempre abordado em salas de emergência clínica.
Várias complicações físicas advindas do consumo de opioides podem ocorrer, especialmente com a administração intravenosa. Alguns sinais físicos devem ser investigados em usuários de opioides injetáveis ou não, dentro do próprio serviço de emergências médicas:
a) Marcas de picadas de agulha;
b) "Trajetos venosos": cicatrizes encontradas ao longo do trajeto das veias devem ser avaliados, especialmente pigmentação;
c) Tatuagens: muitas lesões relacionadas com picadas de agulhas ou cicatrizes são indícios do consumo de drogas injetáveis. Muitos dependentes utilizam-se de tatuagens para esconder aquilo que pode revelar os seus hábitos;
d) Edemas (inchaço) em mãos: pode ocorrer em função do comprometimento das veias do dorso das mãos;
e) Abscessos e úlceras;
f) Ulceração do septo nasal: a inalação de heroína pode provocar ulceração do septo nasal, principalmente quando o usuário associa a inalação de heroína com cocaína;
g) Queimaduras de cigarros na pele: podem ser provocadas pela sonolência causada pelo uso de opioides, quando os dependentes adormecem segurando seus cigarros.
Outras complicações clínicas possíveis podem envolver o sistema cardiovascular; sistema pulmonar; sistema gênito-urinário e reprodutor; sistema gastrointestinal; sistema neurológico; sistema hematológico; e sistema osteomuscular.
Síndrome de abstinência:
Na síndrome de abstinência, os sintomas inicialmente são suores, lacrimejamento, rinorreia (coriza profusa), bocejos e fissura. Após algumas horas da abstinência de um opioide de meia-vida curta, os sintomas são inquietação psicomotora, ondas de calor e frio, dores musculares, cólicas abdominais intensas, midríase (pupilas dilatadas), calafrios e tremores de membros superiores e inferiores. Após cerca de 24 horas do uso de opioide de meia-vida curta, náuseas, vômitos, diarreia, aumento da pressão arterial, da temperatura e da frequência cardíaca, cãibras, disforia (ansiedade, depressão e inquietude) podem estar presentes.
As principais formas de tratar dependentes químicos são: psicoterapias, grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos), tratamento em regime de internação, tratamento em regime de ambulatório e psicofarmacoterapias.
Em geral, o tratamento farmacológico das dependências químicas em geral reserva-se ao tratamento dos quadros de intoxicação, da síndrome de abstinência, dos quadros de agressividade ou de alteração comportamental induzida por drogas e das complicações clínicas. Mas, no tratamento da dependência de opioides, deve-se levar em conta a baixa eficácia do tratamento psicoterápico, os importantes sintomas da síndrome de abstinência, o estilo de vida caótico de boa parte dos pacientes e a síndrome de abstinência caracterizada por notáveis sintomas físicos e psicológicos. Assim, o tratamento farmacológico da síndrome de dependência de opioides poderá ser prolongado, com a finalidade de proporcionar a adequada qualidade de vida do paciente e a sua inserção social.
Medicações para controlar abstinência
As medicações metadona e buprenorfina são os dois principais agentes medicamentosos utilizados para controlar os sintomas da síndrome de abstinência aguda e protraída do paciente dependente e devem ser adequadamente prescritas por profissionais qualificados. Cada uma dessas medicações tem indicações específicas para prescrição e o uso deve ser rigorosamente acompanhado por médicos especialistas.
Existem diretrizes nacionais e internacionais que norteiam o uso dessas medicações para o paciente dependente de opioide. De fato, o médico especialista que as prescreve deve estar bastante familiarizado com esstas diretrizes, objetivando desenvolver um tratamento seguro e eficaz para o seu paciente.
Frequentemente, reitero aqui no Vya Estelar que o tratamento da dependência química é uma via de mão dupla. Isso significa que o paciente dependente deve colaborar intensamente com o tratamento; do contrário, o resultado será insatisfatório.
Também, vale a pena ressaltar que o uso da metadona e da buprenorfina não é isento de riscos. Seguramente, os riscos diminuem à medida que o acompanhamento médico for estreito, correto, e baseado em evidências científicas de efetividade. Por isso, reitero a necessidade da atenta adesão às diretrizes nacionais e internacionais que regem a prescrição.
Bom, você descreve padecer de problemas relacionados ao uso de opioides. O seu trabalho, de alguma forma, pode ter facilitado o seu acesso a eles. Dessa forma, você necessita de fato de tratamento prolongado e altamente especializado. O apoio de familiares é componente bastante desejável nesse processo. Boa sorte!