Como lidar com a dependência química em médicos?

por Danilo Baltieri

"Um médico anestesista dependente de opioide pode voltar ao trabalho depois da internação se estiver em tratamento?"

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Resposta: Segundo alguns estudos americanos, cerca de 10 a 12% dos médicos desenvolvem um quadro de Síndrome de Dependência de Substâncias Psicoativas. Essa taxa é similar a da população geral. Também, de forma semelhante à população geral, tanto o diagnóstico quanto o auto-reconhecimento de um quadro de dependência química entre médicos são bastante demorados.

O médico dependente receia as consequências, a perda do prestígio, a vergonha diante de amigos, familiares e pacientes, a possível deterioração da capacidade cognitiva e física. Infelizmente, familiares do médico dependente bem como colegas da profissão acabam por se enveredar em um infrutífero “pacto de silêncio” em relação ao problema detectado, evitando falar sobre o fato ou mesmo aconselhar firmemente o médico dependente sobre a busca imperativa de um tratamento eficaz.

Estudo

Um estudo publicado em 2008 (McLellan et al.), baseado em uma amostra americana de 904 médicos dependentes químicos que procuraram tratamento em programas específicos demonstrou que 87% dos médicos eram do gênero masculino, 50% faziam uso inadequado de bebidas alcoólicas, 36% de opióides, 8% de estimulantes e 14% tinham um história de uso de drogas injetáveis.

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Nesse estudo, as especialidades Anestesiologia, Medicina de Emergência e Psiquiatria foram as mais representadas. Alguns fatores como ‘estresse no trabalho’, ‘fácil acesso às drogas no local de trabalho’, ‘alta competitividade’, ‘muitas horas de trabalho’, ‘lidar com a morte ou o morrer’, ‘pouco tempo para o lazer e familiares’ têm sido apontados como fatores facilitadores entre os profissionais da saúde que desenvolvem quadros de dependência química. Entretanto, esses fatores não são completamente suficientes para explicar a prevalência de dependência entre médicos. Pesquisas recentes têm apontado novas propostas etiológicas (causas) em termos de maior ou menor susceptibilidade de uma ou outra especialidade médica, focando, por exemplo, na maior ou menor exposição às substâncias voláteis no ambiente de trabalho.

Muitas vezes, os colegas do médico dependente sentem-se bastante desconfortáveis para abordá-lo sobre o evidente consumo de drogas. No entanto, é importante lembrar que o médico dependente apresenta uma doença, que se caracteriza pela perda do controle diante do consumo de substâncias, podendo alterar suas funções cognitivas, bem como colocar a sua própria vida em risco e também a de outras pessoas. Portanto, acredito ser dever dos colegas não dependentes a disponibilização de todas as formas possíveis e justas de ajuda para o médico dependente. Existe, aqui, um duplo dever: para com os pacientes e para com o próprio médico doente.

Pacto de silêncio

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Infelizmente, devido a um indesejável mas frequente “pacto de silêncio”, desfechos indesejáveis têm sido reportados ao redor do mundo. Por exemplo, a mortalidade (por overdose acidental ou suicida) entre algumas classes de médicos dependentes de opioides chega a ser de 15% em cinco anos.

Os sintomas e sinais da doença Dependência Química são bastante variáveis. Dessa forma, muitas vezes é difícil reconhecer “além de uma dúvida razoável” que aquele colega médico padece ou não desse tipo de problema.

Embora em algumas situações os sintomas e sinais sejam extremamente evidentes, muitas vezes o colega dependente comporta-se como qualquer outra pessoa abstêmia, inclusive durante a vigência do consumo da droga.

Sintomas de dependência química em médicos

Existem alguns sinais que podem auxiliar a detectar o consumo de substâncias entre os colegas médicos:

a) Atrasos frequentes no traballho;

b) Faltas não justificadas;

c) Frequentes ressacas;

d) Redução do desempenho no trabalho;

e) Piora da qualidade de vida familiar;

f) Sintomas físicos de síndromes de abstinência;

g) Irritabilidade freqüente (não usual no passado);

h) Preferência por atividades solitárias (não usuais);

i) Frequentes “desaparecimentos” durante o expediente;

j) Muitas e não usuais visitas ao setor de farmácia (para angariar substâncias);

k) Solicitações frequentes de doses de medicações (opioides) acima das que está de fato utilizando para seus pacientes;

l) Pobre higiene pessoal;

m) Substâncias guardadas (escondidas) junto do dependente;

n) Acidentes frequentes;

o) Comportamentos extravagantes;

p) História de peregrinação por diferentes serviços em diferentes cidades/estados;

q) “Cartas de referência” vagas.

Se a detecção do problema e o encaminhamento para um tratamento forem demorados, o risco de um resultado trágico aumenta.

Nos Estados Unidos, dependendo do Estado, as leis variam quanto a como lidar com um colega suspeito de ser dependente de substâncias. Tal é a preocupação de alguns países civilizados que a forte suspeita de dependência química pode promover uma série de intervenções, muitas delas inclusive compulsórias.

Naturalmente, toda intervenção deve ser realizada por especialistas altamente qualificados na matéria. Uma postura ameaçadora ou mesmo autoritária por parte do especialista em dependências químicas também pode provocar reações devastadoras no colega dependente. Da mesma forma, uma postura altamente complacente não é recomendada.

Quando o médico dependente aceita participar de um tratamento, devemos lembrar que o seguimento é longo e que a necessidade de monitoração é contínua. O sucesso do tratamento depende de múltiplos fatores, como a motivação para cessar o consumo da substância, o suporte familiar adequado, o apoio de colegas, a adequada estruturação de limites.

Além disso, é bastante notória a presença de outros transtornos psiquiátricos/psicológicos na população de pessoas que padece de transtornos mentais relacionados ao consumo de drogas.

Embora seja muito difícil para um médico anestesista dependente de medicações opioides voltar a manusear essas medicações após algum tempo de tratamento e abstinência completa, isso não significa peremptoriamente que ele deverá deixar de trabalhar na área. Às vezes, entretanto, mudar de especialidade pode ser uma conduta desejável em alguns casos. Essas decisões também devem fazer parte do processo de tratamento do médico dependente, e sempre baseadas em evidências claras.

O médico dependente deve aderir a todo o processo de tratamento médico e psicológico e isso não é uma tarefa fácil, embora seja bastante possível.
O PACTO DE SILÊNCIO OU DE CUMPLICIDADE NÃO É FAVORÁVEL AO DOENTE !!!

As equipes de saúde devem, sempre que possível, com o envolvimento das chefias, estabelecer modelos de intervenção, caso surjam colegas médicos ou mesmo outros profissionais da saúde que sofram de Síndrome de Dependência de Substâncias.

A criação de protocolos de intervenção, com o envolvimento de todos os membros da equipe, deveria ser cuidadosamente pensado. Abaixo, recomendo algumas posturas:

Posturas em relação ao médico dependente

a) Ambiente não punitivo, mas franco;

b) Envolvimento de toda a equipe;

c) Estabelecer “regras” com toda a equipe, inclusive sobre o que fazer com aqueles médicos dependentes que recusam o tratamento. Essas regras, repito, devem ser criadas por todos os membros da equipe, sem exceção;

d) Evitar fofocas ou comentários negativos, desqualificando um colega;

e) Ter disponível e interessada uma equipe de especialistas em Dependências Químicas.

Abaixo, forneço interessante referência para maior aprofundamento no assunto:
Berge KH, Seppala MD, Schipper AM. Chemical dependency and the physician. Mayo Clin Proc 2009;84(7):625-31.