Grande número de pessoas ressente-se de problemas que julga serem difíceis e até mesmo insolúveis. Problemas que obstaculizam a felicidade e uma vida boa. Entretanto, essas dificuldades muitas vezes estão ligadas a como encaramos o que nos acontece no dia a dia. Em geral, essas avaliações estão ligadas ao valor que atribuímos ao nosso ego, em função de uma conjuntura cultural na qual aprendemos a viver, como o peixe que vive no aquário.
De fato, a cultura do ego constitui uma atmosfera da qual não podemos nos evadir. Para exemplificar, darei um exemplo. Imagine uma pessoa de minha geração que aprendeu a dirigir automóveis em carros de câmbio manual, daqueles em que é necessário trocar as marchas com a mão direita. Pois bem, a maioria de nós, dessa geração, já dirige carros de câmbio automático, não porque escolhemos, mas porque eles se impuseram no mercado.
Nessa mudança no padrão da direção de automóveis ocorreu uma alteração profunda na nossa relação com o ego. Quando dirigíamos um carro convencional, tínhamos que ficar atentos ao barulho do motor e às condições da pista, para que o veículo continuasse a andar sem solavancos. Cada mudança de marcha exigia uma atenção constante ao ambiente e ao ritmo do motor, com os quais estávamos interligados permanentemente em um processo complexo de interação.
Nos automóveis automáticos nada disso é necessário. Basta acelerar ou frear, sem nenhuma consideração sobre a adaptação do veículo ao ambiente ou sobre a capacidade do motor. Claro que isso ainda tem de ser feito levando-se em consideração a pista, mas o cálculo e a atenção necessários para dirigir foram drasticamente reduzidos. As pessoas não necessitam mais estar plenamente conectadas com o ambiente imediato para dirigir.
Isso significa que o ego foi liberado da necessidade de estar conectado com seu entorno. Ou seja, o ego pode agora aprofundar-se em si mesmo em função do conforto gerado pela direção automática. Como ele não necessita mais empenhar uma grande energia psíquica no ato de dirigir, pode ocupar-se consigo mesmo, com suas necessidades internas, seus pensamentos, com seu prazer e com suas dificuldades.
Conforto proporcionado pela tecnologia e o ego
Ou seja, o crescimento do conforto proporcionado pela tecnologia conduz o ego para dentro de si mesmo na mesma proporção em que ele é liberado do trato com as necessidades imediatas que o cercam. Mais tecnologia, mais conforto, mais ego. A dimensão das relações com o mundo externo diminuem e, na mesma intensidade, se infla o ego. A energia psíquica não evapora nem deixa de existir, ela se retrai para dentro, para o interior das pessoas. Tudo o que era empenhado no trato com o mundo exterior agora passa a ser parte da vida interior, da dimensão acrescida do ego.
À medida que a tecnologia amplia seu controle do mundo, menos cada um de nós precisa ocupar-se com ele. Assim, mais espaço sobra para o crescimento do ego, que efetivamente é inflado nessa circunstância.
Não creio que isso seja algo artificial. Não se trata disso. Se trata de uma alteração na organização de nossa vida interior, de quanto precisamos nos ocupar com o mundo exterior, de que atenção se faz necessário conceder a ele.
Em um mundo controlado pela tecnologia, o ego adquire novas dimensões que não existiam antes. Problemas que não se apresentavam passam a se fazer sentir. Dificuldades que antes nem eram computadas, agora tornam-se decisivas para a felicidade e para uma vida boa.
Um mundo controlado, um mundo confortável e pleno de objetos técnicos não é um mundo necessariamente melhor. Ele é um mundo diferente. A questão é saber se estamos em condições de viver bem nesse mundo novo, nós que dirigíamos carros com câmbio manual.