Como o coronavírus escancara a desigualdade social

Em janeiro de 2020 eu encontrava amigos e me aproximava fisicamente deles, tomava água de coco fresco gelado na praia, fazia compras de mercado, apenas higienizava frutas e guardava o resto rapidinho, usava pouco o álcool gel da necessaire, achava que lavar a mão bastava para, a seguir, devorar sem delongas o lanche na praça de alimentação de um shopping center lotado.

Bem-nascidos

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Tudo mudou. Mas apenas para uma parte das pessoas. Quem tem condição de vida razoável, em termos culturais e financeiros, e uma visão científica de mundo, tende a se recolher dentro de casa, mantendo resguardo, esperando a epidemia amainar.

Pobres, miseráveis e excluídos

E as outras partes? Que pessoas constituem esses grupos? Há um segundo grupo, os excluídos sociais jogados no pântano pandêmico. Como pôr comida no prato se desapareceram os trabalhos, bicos, empregos, qualquer chance de ganhar uns trocados? Desse grupo fazem parte o homem morador de rua que vi beber água na sarjeta e nada fiz por ele, a mãe que sozinha sustentava quatro crianças, morando num barraco na comunidade, sem condições sanitárias, sem infraestrutura de apoio. Também há idosos vivendo de um parco auxilio mensal, dependentes químicos na Cracolândia, analfabetos funcionais, jovens em vias de serem recrutados pelo crime e muita gente mais. Nesse território não há distanciamento social, nem álcool 70%, nem máscara ou possibilidade de compreender as sutilezas da Covid-19, os comentários dos infectologistas ou dos mais afeitos à política e economia.

‘Não tô nem aí’

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Entendo haver um terceiro grupo, pessoas geralmente situadas mais acima da linha da miséria e fortemente apegadas a crenças de onipotência, força pessoal, teorias da conspiração etc. Essas pessoas são mais inclinadas a desafiarem regras quando estas não lhe agradam, pensam mais em si mesmas e bem menos no coletivo, riem… se guiam pela ciência e por evidências. Autoritárias, narcísicas e insensíveis às consequências adversas de como se comportam, destroem o que precisarem em busca de saciarem seus desejos. Para que máscara? Para que se isolar? Uma festa apinhada de gente na laje ou na cobertura é um entretenimento garantido, enquanto os fracos e babacas ficam acuados em casa. E assim seguem a vida, afrontando a tudo e a todos.



Onde me situo? No primeiro grupo, estou entre aqueles seguidores de regras benéficas para a vida comunitária, buscando ajudar (menos do que deveria) os indivíduos do segundo grupo e sentindo uma crescente indignação com quem faz parte do terceiro. Estou alternando entre impotência, indignação, desamparo, aceitação, medo, raiva, engajamento social, compaixão y otras cositas. Eita vida mutante, até mais que os coroados vírus…