O amor nos move na direção do que é o bem. Por vezes, queremos ser melhores por inveja, competição, por reconhecer em alguém um bem ou uma qualidade que nos desestabiliza. Para falar do amor nas canções da Legião Urbana e preciso pensar também nesse sentimento como inspiração e inveja criativa. A relação de Cazuza e Renato Russo é um bom exemplo. Vamos tratar neste texto de como a inveja das canções da Legião Urbana levaram Cazuza a tentar se aperfeiçoar, construindo canções que pensassem o país.
O rock brasileiro da década de 80 surge como um novo produto, que dentro da abertura democrática daria voz para a juventude. Uma juventude que queria a liberdade da autocriação pelo consumo e tinha uma postura alienada em relação aos problemas políticos e sociais (característica que vem se revelando de modo persistente). O Barão Vermelho de Cazuza em seus primeiros discos desdobrava a dor-de-cotovelo em uma linguagem nova do privilégio de autoagelo (que marcou a geração beat), festiva, destrutiva e intensa.
Legião Urbana: questões políticas e sociais, uma novidade inquietante
O surgimento da Legião Urbana no rock nacional trouxe uma novidade inquietante, pela força das canções que tratavam tanto das questões políticas e sociais, quanto do universo afetivo; assumindo a construção de identidade pelo consumo, propunha ser um produto que jogaria o lixo de volta em cima das elites: era a geração Coca-Cola.
Renato Russo, líder da Legião Urbana e seu principal compositor, seria quatro anos mais novo que Cazuza, graduado em jornalismo, trazia um discurso cheio de referências, tanto do rock e do cinema, quanto da literatura e da filosofia. Seu trabalho trazia uma densidade diferente da espontaneidade de Cazuza, tanto Renato mentia sua idade (ou melhor, dizia que seu personagem era 4 anos mais novo que o Renato Manfredini Jr.).
Cazuza: crise e inveja criativa
Cazuza, diante da obra da Legião Urbana entrou em crise considerando a possibilidade de uma virada geracional de uma juventude que superava a alienação inicial daquele momento do rock brasileiro, como explicou numa entrevista de 1987: “Sempre que vem um pessoal novo, o pessoal mais velho fica numa de ‘né’… ‘e você se autocritica (…) Fiquei completamente chapado, por exemplo, com as letras do Renato. Me deu uma inveja criativa!”.
Ideologia
Mas só em 1988, no álbum Ideologia Cazuza conseguiu transformar essa inspiração em canções. Em entrevista daquele ano reformulou um pouco sua avaliação: “Quando o Renato Russo pintou, eu fiquei com uma inveja, […] e meu trabalho cresceu tanto a partir dessa inveja, que eu comecei a escrever coisas diferentes. Sair daquela dor-de-cotovelo, daquele “nhem,nhem,nhem”, como diz a Rita Lee. Saí para uma outra coisa, o Renato falava muito da geração dele, e eu disse: “vou falar da minha geração também, vou falar do Brasil também”.” Aos 29 anos, em Abril de 1987, o tempo se acelerou para Cazuza: ele descobriu que estava com AIDS. Em sua autoavaliação, ele já vivia um conflito intenso que pedia que se reinventasse, disse: “Não foi a doença que causou essa crise, mas talvez tenha sido a crise que detonou a doença.
Depois de sair do Barão Vermelho em 1985, Cazuza pode ampliar seus horizontes musicais e ir na direção de um diálogo mais efetivo com o samba, aproximando-se da MPB. Fazia isso contrastando suas referências com a dos rockeiros que macaqueavam os Smiths e o U2: para ele o diálogo se dava com Lupicínio, Cartola e a herança e reinvenção da malandragem carioca.
A Legião Urbana chegou a ensaiar um passo nessa mesma direção ao gravar a canção Juízo final de Nelson Cavaquinho (que seria a última do álbum Dois de 1986). Essa gravação nunca foi lançada – substituída pela canção “Índios” – até para não repetir os passos e a do compositor carioca[1].
Cazuza, já sofrendo com efeitos da doença, compareceu no lançamento em outubro de 1987 do álbum Que país é este (1978-1987). Naquele mesmo mês, o compositor carioca foi internado e ficou próximo da morte; o uso experimental de uma nova droga – o AZT – permitiu que seu quadro melhorasse. No tempo internado, continuou produzindo e de volta ao Brasil em Dezembro, começou a projetar seu novo disco em que projetava uma nova temática e parcerias: prometia uma canção em parceria com Renato Russo. A parceria (de que falaremos em outro texto) não ocorreu, mas o diálogo sim.
Mudar o mundo
O disco Ideologia foi a resposta de Cazuza para a crise, sua intensidade poética se voltava para uma direção mais social. Se a Legião Urbana batizou ironicamente a geração Coca-Cola, Cazuza agora trazia um espelho para essa reinvindicação do rock de “mudar o mundo” sem assumir efetivamente nenhuma luta política. A canção Ideologia sintetizaria esse diagnóstico: “Ideologia fala da minha geração sem ideologia, compactada entre os anos 60 e os dias de hoje. Eu fui criado em plena ditadura, quando não se podia dizer isso ou aquilo, em que tudo era proibido. Uma geração muito desunida. Nos anos 60, as pessoas se uniam pela ideologia. ’Eu sou da esquerda, você é de esquerda? Então a gente é amigo’. A minha geração se uniu pela droga: ele é careta e ele é doidão. Droga não é ideologia, é uma opção pessoal. A garotada teve a sorte de pegar a coisa pronta e aí pode decidir o que fazer pelo país, embora do jeito que o Brasil está, haja muita desesperança”.
A Legião Urbana no disco Que país é este (1978-1987) trazia um panorama de respostas para a canção que deu nome ao disco e que é uma das mais antigas composições de Renato Russo. Que país é esse, escrita em 1978 permanece ainda hoje como um grito punk de indignação que funciona por sua estridente contundência e simplicidade: a pergunta pela identidade do país era um desafio repetido por toda MPB (daí o nome Música Popular Brasileira), naquele momento surgia a possibilidade de um tipo de resposta que olhava de frente o vazio niilista (correndo o risco de cair nele), se opondo ao discurso ufanista, que explora e vende a alma de todos aqueles que têm uma esperança ingênua de que as coisas podem mudar ou melhorar.
Brasil, mostra a tua cara
Cazuza fez a canção Brasil como uma resposta para Que país é esse, mas quanto a Legião trazia um punk rock de três acordes, o compositor carioca junto com George Israel e Nilo Romero criou uma espécie de samba-rock que dialogava e se contrapunha ao clássico do sambista Noel Rosa Com que roupa: se o problema era não na canção de Noel, era não ter roupa para ir à festa, a situação no Brasil de Cazuza era de não “ser convidado” e ter que ficar na porta estacionando os carros. Cazuza explicou uma mudança de “narrador” entre a canção Ideologia, na qual quem fala é um jovem burguês, para Brasil que dá voz a forma como “um cara pobre, normal, vê, sem paternalismo, esse 1% da população que está se dando bem – e da qual eu faço parte”. Neste sentido, a canção Mais do Mesmo, que fecha o álbum Que país é esse da Legião Urbana traz a reprimenda de alguém da favela que vê um menino branco “subindo morro pra tentar se divertir”, a letra nega qualquer resposta para a tentativa de retratar o país: o filme queimou e há tiroteio no fim do túnel. Também coloca em questão a vontade colonialista e intelectual de explicar “ao outro“/“ao povo” quem ele é, o que pensa, o que sente.
Legião e Cazuza: que caminho sonhar?
Tanto o discurso da Legião quanto o de Cazuza situavam um impasse: que caminho sonhar para um país tão desigual e com elites tão mesquinhas. A resposta da Legião estaria na busca do amor sagrado e ecumênico de As quatro estações, já a de Cazuza seria reconfiguração da malandragem de O tempo não para (lançado em um álbum ao vivo de Outubro de 1988): a malandragem é a coragem de sobrevir sem cair no jogo de favores clientelistas, da caridade dos que nos detestam. Andar nessa corda bamba é reconhecer o paradoxo e a esperança da luta cotidiana de quem tenta sobreviver à margem desse jogo cínico, sem ceder ao lugar comum da cordialidade, pedindo aos deuses piedade para os caretas e covardes e só um pouco de malandragem para as crianças que não têm mais esperança e inocência, para os poetas que não sabem amar.[2]
1] Que seria depois radicalizada por Lobão.
[2] Expliquei a redescrição que Cazuza faz da malandragem no ensaio “Cazuza e a malandragem de ser brasileiro”. In: FERREIRA, Arthur A. Leal. (org.) Pragmatismo e questões contemporâneas. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2008.