Pegue leve e resgate a leveza nas suas relações: todos gostam de ser tratados de forma delicada. Elogios e a valorização pessoal constroem nossa identidade, autoconfiança e os nossos vínculos.
Introdução
“Somos autores e atores de uma narração que se enlaça com as dos outros, de modo que cada personagem principal de sua própria história tem também um papel, ainda que secundário, na história dos outros.” (Livro: VIDA, VÍCIO, VIRTUDE. Adauto Novaes (ORG.). SP: Editora SENAC SP, Edições SESC SP, 2009, p.91).
Tive, como fonte de inspiração para escrever esse texto, uma cena que testemunhei no feriado de setembro, numa bucólica praia do lindo litoral pernambucano.
Na cena, um casal estava de saída da areia da praia, precisando para isso, recolher cadeiras, guarda-sol, caixa de isopor etc. A mulher, que supus ‘cônjuge’, gritava, espumando, como cão raivoso, que o homem, suposto marido, era “imbecil, burro e inútil”… ao que o homem respondia como um mantra: que a mulher era “louca, insana que devia estar num hospício”…
Na medida em que seguia meu passeio pela orla da praia, me pegava indagando sobre a cena, sobre o quanto se perdera ali, a alegria e a paz de se estar num cenário tão especial, transformando em inferno de Dante um cenário paradisíaco.
E logo comecei a matutar sobre o conteúdo que quero refletir com vocês: andamos ‘espumando’ como cães raivosos, transformando erros em tragédias humanas, agindo movidos por um sistema límbico, primitivo e instintivo, que permaneceu conosco, apesar da evolução, para nos proteger de ameaças reais e não, para ser usado impulsivamente, sempre que nos frustrarmos com algo, que fazemos, ou com que outros fazem.
Demos “ré”, involuímos, afinal, carregamos um cérebro frontal, capaz de pensar, de refletir e de achar soluções para qualquer problema, e que parece não estar sendo acionado, nestes tempos de pós-pandemia, de ‘novo normal’, será decorrência de nosso ‘distanciamento social’, do excesso de proximidade e da crise social aberta e incrementada pela pandemia?
Infelizmente, constato que resolvemos ‘abolir’ nossa gentileza de nosso mapa pessoal e relacional, apesar de sermos pessoas que não foram atingidas pelo vírus da Covid-19, ao invés de celebrarmos nossa vida e saúde, de sermos agradecidos por todo o bem que fazemos e recebemos, e assim, corrermos atrás do que for preciso.
Esse será nosso mote reflexivo: precisamos voltar a ser gentis, a ‘pegar leve’ conosco e com o outro, e desejo assim, contribuir para apaziguar nossas relações que andam muito desgastadas, por esses tempos.
O que aconteceu com nossa delicadeza?
Todos gostamos de ser tratados de forma delicada e já é sabido do quanto os ‘elogios’ e a valorização pessoal, são argamassa na construção de nossa identidade, autoconfiança e de nossos vínculos.
Contudo, se gastarmos um pouco de tempo e nos tornarmos atentos às palavras e atitudes circulantes, perceberemos que as pessoas andam intolerantes, impacientes e muito insatisfeitas com tudo.
Debaixo desse trio de ‘desgostos’, nossa tendência será o queixume, o azedume e a agressividade. Até do tempo reclamamos: se está calor, reclamamos do abafado; se chove, nos incomoda os desconfortos provocados pela chuva; se faz frio, nos encolhemos queixosamente e suplicamos pelo calor e pelo abafamento…nos tornamos humanos que só resmungam.
Sem dúvida alguma, e já falamos disso em outro texto, o fato de termos nos confinado, de termos nos afastado de bons contatos e de bons convívios, acirrou a agressividade vincular, sobretudo entre os ‘íntimos’.
Acompanhamos na mídia e nas redes sociais, cenas de violência doméstica à exaustão. Desde o início do ano de 2021, a Sociedade Brasileira de Pediatria clama pelo retorno das crianças às escolas, pois a violência corporal impetrada contra as crianças cresceu, assustadoramente. Ao invés de abraços, ‘surras’, castigos e violência verbal abundam nas relações pais e filhos.
E acompanhamos a um número duplicado de separações e divórcios nesse período pandêmico, parece que o Coronavírus entrou em nossas casas e devastou não somente nossa capacidade respiratória, mas levou junto, nossa alegria, nossa capacidade de ser amáveis, atenciosos e cuidadosos.
E, de maneira, mais geral, as pessoas ‘fechadas’ em seus mundos, se tornaram mais agressivas em suas convivialidades, quase que ‘procurando pelo em ovo’, para ser queixoso, agressivo e desqualificador, e o mais das vezes ‘frio’ em suas trocas relacionais.
Parece que o padrão ‘pegar pesado’, desqualificador, passou a ser o padrão dominantes de relação e ação entre as pessoas em tempos de pandemia e pós-pandemia.
Estabelecendo uma nova trilha: o ser gentil
Mas, não nos esqueçamos de celebrar a chegada das vacinas, ainda que tardia em nosso mundo local pelo negacionismo governamental central, que nos imunizam, e lentamente, permitem que voltemos à vida e aos vínculos ampliados.
É como se a ‘primavera’ da delicadeza aportasse em nossos mundos, tornando-nos outra vez, capazes de um retorno ao gentil e à delicadeza.
Mas para acordar de nossa ‘hibernação’ relacional, e suas nefastas consequências, precisamos elevar os nossos olhos, abrir nossos ouvidos e nos conectarmos com a vida que insiste em seguir seu fluxo, fora de nossas cavernas.
Tenho o privilégio de viver, em São Paulo, num bairro muito arborizado, e num condomínio quase centenário, que mantém jardineiros cuidando das árvores e plantas. Agradeço, diariamente, ao Deus em quem creio, por esse privilégio.
E, habitualmente, verifico, a chegada do tempo da florada das orquídeas, que os moradores deixam no jardim, quando elas deixam de florir em suas casas. Antes da pandemia, entre os meses de agosto e setembro, elas floravam, lindíssimas, me recordando que há ‘o belo’ ao meu redor, e que preciso celebrar a vida, sempre.
Mas em agosto e em setembro de 2020, acompanhando nossas mazelas pandêmicas, a maioria das orquídeas não floresceu… e eis que ontem, em pleno ‘outubro’ de 2021, após dias de chuvas constantes, me deparo com um cenário que muito me emocionou: todas as orquídeas se abriram, incluindo a orquídea chocolate, que me presentearam há 4 anos e que além de linda, exala o perfume, que nos lembra chocolate, daí o porquê do nome.
Como resgatar a leveza nas suas relações
Se ao sairmos das ‘cavernas’, olharmos ao nosso redor, sempre haverá uma árvore, uma vegetação, pássaros e aves que seguem seus ritmos, aconteça o que acontecer. Precisaremos mirá-los.
E, assim, como não ser ‘sacudidos’ de nossa letargia pandêmica? Basta contemplar as flores, seguir o canto dos pássaros que habitam as copas das árvores, mirar as lindas borboletas que enchem de cor os jardins… É mais simples do que fazemos, sabe-se milenarmente, que o ‘simples resolve tudo’, cantam os poetas.
E com um novo e renovado “ânimo”, será possível ver saída para nossos dilemas, sejam eles de que origem for: pessoais, profissionais, afetivos, relacionais ou sociais.
Daí poderemos atender ao chamado de retornos ao leve, à delicadeza, e à harmonia que se desdobrará em autocuidados, autocompaixão e cuidados e compaixão com o outro.
E para terminar…
Aprendemos, com o terremoto que devastou Lisboa, nos idos de 1755, e com um dos governantes que auxiliou na reconstrução da cidade, o polêmico Marquês de Pombal, apesar de sobre ele, historicamente, pesarem sérias críticas à forma como ele a ‘reconstruiu’, favorecendo os favorecidos, como de costume político no mundo, que três atitudes eram fundamentais para reconstruir a cidade devastada, e podemos aplicar as lições nesse nosso tempo de pós-devastação: tem-se que “fechar os portos, enterrar os mortos e cuidar dos vivos”.
Isso, aplicado a nós e nossos vínculos equivale a dizer: ‘peguemos leve’ conosco e com o outro, talvez seja tempo de ‘fechar os portos’, de cuidar de nosso quintal, antes de ‘desesperadamente’ organizarmos saídas, que nos ‘façam esquecer’ o que vivemos… precisamos ‘enterrar nossos mortos’, fazermos uma ‘mea culpa’. Ou seja, o reconhecimento de onde e com quem erramos, nos desculparmos e por fim, e só assim, poderemos ‘cuidar dos vivos’, precisaremos voltar a ser compassivos, tolerantes, pacientes e melhor avaliadores de nós e dos outros, reconhecendo e enaltecendo, outra vez, as qualidades e ‘relevando’ os erros e defeitos nossos e dos outros.
E vai aí uma canção para apoiar nossa ‘reconstrução da delicadeza’, e que ela nos inspire. É uma marchinha de Carnaval, do século passado, cantado por um cantor também do século passado: “Estão voltando as flores”, com Altemar Dutra, num medley com outra marchinha: “Bandeira Branca”, afinal, é lindo demais viver e celebrar a vida.
Estão Voltando As Flores/Bandeira Branca
Altemar Dutra
Vê, estão voltando as flores
Vê, nessa manhã tão linda
Vê, como é bonita a vida
Vê, há esperança ainda
Vê, as nuvens vão passando
Vê, um novo céu se abrindo
Vê, o sol iluminando
Por onde nós vamos indo
Por onde nós vamos indo
Bandeira branca, amor
Não posso mais
Pela saudade que me invade
Eu peço paz