“Ostra feliz não faz pérola”: valorizando nosso “sofrimento” para mudarmos aprendizagens.
Introdução
“… uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: ‘ela não sai da sua depressão…’. Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro de sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas asperezas, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava”.
(Rubem Alves. Do livro: Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Editora Planeta Brasil, 2008, p.11).
Resolvi refletir, nesse nosso espaço, sobre a importância de acolhermos as dores que vivemos em nossos relacionamentos, e assim, podermos crescer como seres humanos relacionais.
Não falo aqui de submissão ao sofrimento, sobretudo em relações abusivas, como refleti no texto anterior a esse. Refiro-me a uma capacidade, que anda escassa em nosso mundo relacional mais atual: a capacidade de ‘suportarmos os dissabores’ nos nossos relacionamentos, para a partir deles, nos tornarmos mais humanos, mais belos, no sentido de podermos transformar nossas existências para melhor, ou seja, para produzirmos pérolas.
Autoengano nas experiências relacionais
Parece que numa sociedade espetáculo, a tendência relacional é a do “autoengano”, ou seja, passamos por cima das nossas experiências relacionais difíceis, negando a dor que elas promovem, meio que dizendo “nem doeu, não vou chorar”.
Normalmente, aprendemos isso em nossas ‘equivocadas socializações’, para que nos tornássemos pessoas fortes, que aguentam tudo, dão patada e seguem em frente.
Lamentável cenário, que nos tem transformado, por vezes, ou em ‘tratores relacionais’, que amargarão a solidão relacional, em algum momento da vida, mas que até lá, parece que têm o poder de ‘infernizar a vida de muita gente’.
Como então, aprender com as ostras tristes, a produzir pérolas? Esse é nosso mote reflexivo. Desejo, ao final dele, ter partilhado minhas ideias com vocês, e que elas contribuam com o exercício relacional de vocês.
A dificuldade em acolher a “dor nossa de cada dia”, provocada pelas asperezas e dificuldades inter-relacionais.
Pois é, já diziam os filósofos, muito, muito, muito, tempo atrás que nossa humanidade, não apresenta afinidades com a dor e sim com o prazer.
Parece que isso é bem verdade, negar a dor e fugir dela, se tornaram estratégias usuais, em nossos vínculos.
Somos estimulados, a cada passo que damos, seja no vínculo que for, a “negar os mal-estares”, a respondermos a aquele, que em nossa intimidade habita e que nos indaga: há algum problema? Aprendemos a responder com um sonoro e falso “não há nenhum problema, está tudo bem, não encana…”.
Com isso, silenciamos, negando, uma dor que precisaria ser chorada, lamentada e expressa, mostrando assim, o desentendimento que ocorrera. Dando a nós e ao outro, a chance de refazermos a curva do rio, que poderá se tornar num istmo, onde ficarão presos, pequenos galhos de ‘desentendimentos amontoados’.
Intolerância à dor
Mas a pergunta que não quer calar é: como e para ‘quê” desenvolvemos essa ‘intolerância à dor”. Agora, tentarei, como uma bom ‘alergista’, levantar algumas hipóteses sobre essa tal intolerância.
Uma primeira hipótese, pode vir de uma emoção básica humana, saldo de nossa luta animal, pela sobrevivência da espécie: ‘o medo’. Isso, o medo nos relacionamentos cresceu estrondosamente em nossos vínculos. Parece que temos medo de nos doar, temos medo de sofrer, temos medo de sermos abandonados, trocados por outra pessoa, medo de não sermos entendidos… e assim, nos acuamos, por puro medo.
Nos queixamos baixinho, não encaramos o outro que provocou nosso mal-estar, e o mais das vezes nos queixamos a terceiros, que ouvirão, mas nada poderão fazer ou dizer, que realmente nos encoraje a encarar o medo. E assim, o medo só cresce, e nos afasta do outro.
Outra hipótese que levanto, se ancora em nossa tendência, também humana, de nos afastarmos do que nos incomoda: deixamos de falar com nosso desafeto, fugimos dos encontros, ficamos superficiais em nossas conversas, fugindo, assim, da experiência dos desconfortos. Se ao menos o ‘plano de fuga’ funcionasse, mas ele é mais uma ‘ilusão’ que carregamos. Nesse cenário, os desconfortos só crescem e geram separações e rupturas, e longos silêncios.
Então, como fazer para avançarmos para além dos medos e das fugas?
Suportando o “processo transformador” de fazer nossas pérolas…
Gosto muito da palavra “suportar”, dar suporte, ancorar. Precisamos aprender ou reaprender a sermos suporte para nós mesmos.
Precisamos conhecer nossos limites, para poder superá-los. Penso que se temos medo, precisamos olhar ternamente para ele, teremos que desconstruir as tais aprendizagens anteriores nas quais disseram que tínhamos de ser mulheres e homens destemidos, como forma de sermos considerados vencedores.
Li certa vez, no livro “A Bibliotecária de Auschwitz”, que ter coragem, não significa não ter medo, e sim enfrentarmos, o que quer que seja, com medo e tudo. Isso para mim, é acolher o medo. Isso implica em falar, entre lágrimas, às vezes falar baixinho, mas falar.
Se o que sentimos é vontade de fugir, já que esse deve ter sido nosso “mecanismo de sobrevivência emocional”, outra vez precisaremos da autodelicadeza para lidarmos com esse ‘descaminho’ tão antigo, por onde temos andado, por décadas.
Sem fugir, procuraremos ter paz, para vencer o medo, as inseguranças e as incertezas dos tempos de “areia dentro da carne”, em nossas relações. Só assim, veremos em algum momento, ou bom tempo depois, ou talvez, até muito tempo depois, a linda pérola, em que todo esse sofrimento, enfrentado, nos levou a produzir.
Com sua pérola tão desejada, estabeleça suas rotas relacionais
Já com a nossa tão desejada ‘pérola’, em nossas mãos, seremos bem mais capazes de estabelecer nossas rotas relacionais. Teremos nos apropriado, assim, do nosso valor, do valor de nossa existência, dores e transformações, daí decidiremos, com bem mais propriedade o que queremos fazer com esses vínculos difíceis: nos afastarmos, sem precisar ‘romper’, litigiosamente, a relação. Podemos decidir, inclusive, seguir com esse outro, que produz areia em nossa ostra, e se for esse o caso, já seremos também capazes de não conceder ao outro o poder de ‘roubar a nossa paz’, porque ela passará a ser de domínio próprio.
E assim, entre, lamentos e alegrias, de nosso viver, poderemos seguir nos transformando, sempre. Princípio esse, o da transformação, que garante a vida nos sistemas da natureza, afinal, os sistemas fechados e parados, tendem à morte e ao aniquilamento.
E para terminar…
Num desses Domingos iluminados na encantadora cidade onde habito, há 20 anos, a cidade de São Paulo, flanando numa feirinha de artesanato e negócios criativos da cidade, escutei o criador musical e cantor, Guga Pine. Amei escutá-lo, suas canções autorais, cheias de gingado, se misturavam com “músicas velhas”, como ele intitulava alguns de meus pedidos, há, há, há… e ao comprar seu CD, descobri que o tal Guga é muito melhor, do que eu supunha.
E escolhi a sua música: “Costume”, para concluir, com arte, minha proposta de sairmos dos “costumes e aprendizagens”, como caminho de libertar as nossas almas e vínculos. Ouça:
Costume
Guga Pine
Lavante a cabeça
Costume de esquecer que um amor dói
Costume que faz você ver que está preso ao
Costume de não se desprender do
Costume de sempre se iludir com
Costume de sempre achar que o
Costume do outro vai ter completar
Costume de nunca se preparar
Acostume-se a se acostumar
É nessa vida louca tão acostumada
Que se vivem as pessoas sempre tão ocupadas
Se afogando na vertigem toda alienada
Tem que fazer! Tem que fazer!
Se acostumando a viver sempre na estrada
Garantindo que sua vida está acostumada
A achar que nunca tem que mudar nada
Por quê?
Costume de ficar no chuveiro sem fazer nada
De olhar no relógio e dizer: “Tô atrasada”
Costume de deixar pra depois sua empreitada
O costume de procrastinar!
Costume de dizer eu te amo pra namorada
De olhar nos olhos e fingir uma risada
O costume de sempre concordar
sem saber nada
Costume de não enxergar a parte engraçada
De endurecer e acinzentar a madrugada
O costume de fazer tempestade em copo d’água
O costume de calcificar!
O costume de ser infeliz gastando nada
O costume de em toda vitrine ficar parada
O costume de só sorrir se a transação é aprovada
É ostentar!
É nessa vida louca tão acostumada
Que se vivem as pessoas sempre tão ocupadas
Se afogando na vertigem toda alienada
Tem que fazer! Tem que fazer!
Se acostumando a viver sempre na estrada
Garantindo que sua vida está acostumada
A achar que nunca tem que mudar nada
Por quê?
E depois de um tempo a agende sempre nota
Que os costumes acostumaram-se a se acostumar
E lá dentro floresce uma grande revolta
Que no fundo só serviu pra gente poder vislumbrar
É nessa vida louca tão acostumada
Que se vivem as pessoas sempre tão ocupadas
Se afogando na vertigem toda alienada
Tem que fazer! Tem que fazer!
Se acostumando a viver sempre na estrada
Garantindo que sua vida está acostumada
A achar que nunca tem que mudar nada
Por quê?