por Roberto Santos
De chefe e de louco todos temos um pouco…
Este subtítulo parodia a máxima que fala de médicos, baseada na história do Jackyl and Hyde — figuras representadas em peças teatrais e filmes que apresentavam os dois lados de uma personalidade – o lado luz e o lado sombra. A paródia não é tão absurda quando lemos a matéria recente da revista Superinteressante intitulado “Psicopatas S.A.” que trata de estudos apontando para a presença de pessoas com transtornos mentais em nossos meios organizacionais, inclusive (alguns diriam, principalmente) em posições de liderança.
A referida matéria informa que os psicopatas representam 20% da população carcerária, o que não significa que sejam potenciais “serial killers”. Segundo a matéria da revista, “o psicopata vai atrás daquilo que lhe dá prazer. Pode ser dinheiro, status, poder. É por isso que outro lugar fértil em psicopatas, além da cadeia, é a firma.” Não limitado a este nível, mas pelos objetos de desejo citados, podemos estimar que muitos dos psicopatas estão em alguma posição de chefia.
“Chefe psicopata – você ainda vai ter um!”
Este bem que poderia ser um título alternativo para o presente artigo. Claro que não me refiro àqueles ainda trancafiados em um sistema manicomial medieval, mas àqueles com abordagens bem mais sutis e sofisticadas que até são consideradas qualidades por algumas pessoas e/ou por algum tempo.
Não estamos falando também de criminosos, como os “Bernie Madoffs” que andam por aí (soltos ou presos) ainda que muitos fazem alastrar úlceras e alagar o ambiente de trabalho com lágrimas. Porém, como entregam resultados no curto prazo para organizações gananciosas, conseguem preservar suas posições por muito tempo até que descarrilem em suas carreiras.
Ainda segundo a matéria citada, “até 3,9% dos executivos de empresas podem ser psicopatas, segundo uma pesquisa feita em companhias americanas. Uma taxa quatro vezes maior do que na população geral.” A quantidade de fraudes espalhadas pelo mundo corporativo provavelmente é determinada por este segmento não muito confiado em altos escalões das grandes corporações ou no balcão da pequena farmácia da esquina.
Por que executivos fracassam?
Na segunda metade dos anos 80, alguns psicólogos organizacionais pesquisaram um tema muito interessante a respeito de nosso tema: “Por que executivos, tecnicamente muito competentes, em algum ponto de suas carreiras, descarrilavam, ou seja, saíam dos trilhos de uma carreira de sucesso e fracassavam. A conclusão a que chegaram é que o fracasso se devia não à falta de alguma caraterística positiva, mas por demonstrarem alguns traços negativos – mostravam-se arrogantes, cínicos, vingativos, explosivos, indecisos, etc. Além disso, verificaram que a origem de alguns desses comportamentos eram aspectos positivos que exagerados, se transformavam em “Descarriladores de Carreiras”. A primeira vez que ouvi sobre isto foi em 1989 por um dos pesquisadores que cunharam este conceito e desde então me interesso pelo tema.
Trazendo para uma linguagem atual e usual nas empresas de hoje, essas características são as competências pessoais. Por esta leitura, aspectos como atenção a detalhes, execução com qualidade, assertividade, expressão verbal e outras, bastante valorizadas pelas empresas, trariam consigo um potencial de derrapagem profissional e podem resultar num tombo desagradável.
Mais recentemente, na década de 90, Robert Hogan, psicólogo norte americano, pesquisador sobre Personalidade e Liderança, analisou as características identificadas nas pesquisas citadas e foi encontrar coincidências nas definições das Psicopatologias estudadas pela Psiquiatria e Psicologia. Traduzindo para a personalidade “normal” e para o mundo organizacional, ele criou uma ferramenta de avaliação psicológica que mensura onze dimensões de personalidade com potencial de transformar um ponto forte num risco de sair dos trilhos. Essa possibilidade de revelar o “lado escuro da força”, lembrando Darth Vader de Guerra nas Estrelas, costuma aparecer em situações de estresse, pressão, mudança e insegurança, e o pior é que, geralmente, a vítima não se dá conta.
Estas dimensões não tratam apenas do termo genérico de senso comum usado na matéria da Superinteressante, o Psicopata que logo relacionamos a potencias criminosos e doentes mentais. Elas tratam, sim, de comportamentos que podem ser os mesmos pontos fortes que nos apoiaram na ascensão profissional mas que, ao cruzarmos a linha ideal, e correr o risco (maior ou menor, segundo informado pelo instrumento) de apresentar comportamentos disfuncionais que podem nos fazer derrapar ladeira abaixo na carreira.
Todos nós, “pessoas normais” (as aspas são propositais) temos nossos “descarriladores” e podemos até ser orgulhosos deles, desde que tenhamos consciência de quando podem mostrar seus efeitos nocivos, para nos recolocarmos nos eixos.
Como um trailer para quem pretender ler os outros artigos daquela série e visando a diferenciar aqueles tipos do conceito pesado presente na matéria dos Psicopatas S.A., destaco: o tipo “Perfeccionista” que está eternamente buscando o pelo na casca do ovo e acaba centralizando as decisões, pois ninguém pode fazer o trabalho bem como ele. O “Cauteloso” que para evitar críticas, adia a tomada de decisões pedindo mais uma informação para sua equipe desconsolada. O “Temperamental” cujo humor pode variar com as fases da lua. O “Arrogante” que parodiando Caetano Veloso em Sampa, “acha feio o que não é espelho” e pode assumir como o Grande Ditador que julga sempre estar certo. O “Reservado” que no auge da crise da firma com boatos de fusão e demissões, ele se fecha na concha de seu escritório e ai de quem for tentar cruzar seu cordão de isolamento. O “Ardiloso” que adora testar limites para alcançar seus objetivos, usando de uma incrível capacidade de manipulação social e de “lobby” para conseguir o que quer. O “Cético” que desconfia da própria sombra até prova em contrário e pode achar que todo mundo é uma ameaça potencial à sua segurança.
Importante lembrar que todos estes tipos, em seus melhores dias, têm seu lado positivo – o “Perfeccionista” não deixa escapar nenhum errinho antes ou depois da vírgula, o “Cauteloso” não comete erros tolos por impulsividade, o “Temperamental” tem energia de sobra dentro do vulcão de sua personalidade, o “Arrogante” é autoconfiante, convicto e assertivo sobre seus pontos de vista, e assim por diante. O problema é quando deixamos passar do ponto; é aí que o caldo desanda e junto nossa avaliação de desempenho.
A Personalidade não pode ser mudada, mas nossos Comportamentos sim…
Nossa personalidade começa a ser formada em nossa primeira infância e está praticamente completa no período da adolescência. A partir daí, podemos afirmar que não conseguimos mudar a essência de nossa personalidade. O que podemos (e devemos) fazer é reconhecer que temos traços de personalidade, manifestados em comportamentos que são fortalezas de nosso caráter elogiadas pelas pessoas. Estes comportamentos devem ser capitalizados porque nos movem às maiores realizações em qualquer campo.
Por outro lado, o exercício contínuo de nosso autoconhecimento estratégico também deve ser exercido para identificarmos aqueles comportamentos que precisamos desenvolver para aprimorar nossa reputação nos ambientes em que atuamos. Podem ser comportamentos que temos no dia a dia, como interromper os outros quando estão tentando falar, perder a paciência com pequenos erros dos outros, tomar decisões impulsivas, sem pensar nas consequências para os que estão ao nosso redor ou podem ser comportamentos que podemos demonstrar quando não estamos em nossos melhores dias.
Como posso lidar com meus Descarriladores de Carreira?
Podemos adotar dois caminhos alternativos diante dos sinais do ambiente de que mostramos comportamentos que as pessoas gostariam que continuemos a apresentar e outros menos apreciados que as pessoas gostariam que parássemos de mostrar. Podemos investir continuamente em nosso autoconhecimento e, pela autocrítica bem calibrada, buscarmos o ajuste fino de nossa eficácia pessoal ou podemos adotar a “postura da Gabriela” – “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou Gabriela” e poderíamos completar – “e os outros que se adaptem a mim”. Obviamente, pesquisas apontam que os profissionais considerados como talentos de alto potencial em suas organizações adotam a primeira estratégia. Para estes, seguem algumas dicas:
Geralmente, num autoexame honesto e realista de nossa consciência e ações, já temos uma boa ideia de nossos traços de personalidade e comportamentos deles decorrentes.
O Perfeccionista sabe o quanto ele sofre quando encontra qualquer pequeno erro num trabalho de menor importância. Para ele(a) tudo deve estar sempre divinamente perfeito. O Temperamental sabe que é meio estourado, ainda que sempre tenha uma justificativa para tal. O Cauteloso sabe de seu receio um tanto exagerado de tomar uma decisão errada. Se temos consciência disto, devemos estar atentos para minimizar o impacto destes comportamentos. Quando não temos consciência sobre estes comportamentos devemos ligar o radar social com urgência
Se ligarmos nosso “desconfiômetro” podemos captar alguns sintomas de que talvez estejamos cruzando o sinal vermelho do exagero de um ponto forte. Se numa reunião com a equipe depois de pouco tempo em que eu assertivamente comunico um plano de ação, as pessoas logo param de dar suas contribuições provavelmente é um sintoma de que eu talvez esteja entrando numa derrapada arrogante – eu sou o dono da razão ou do “manda quem pode, obedece quem tem juízo” – e logo mais, você vai ter uma fileira de vaquinhas de presépio que nada agregam a seu sucesso.
A retroalimentação de nossos comportamentos (o feedback) é o espelho social indispensável na carreira
Outro elemento do radar social, e um dos mais ricos, é pedir feedback às pessoas com as quais trabalhamos – chefes, pares e subordinados – para confirmarmos nossas suspeitas levantadas por nossa autocrítica. Pode parecer simples, mas a suprema habilidade da comunicação – ouvir ativamente – nem sempre é fácil de ser praticada. Especialmente, quando só queremos receber elogios e nos justificamos para todos demais comentários. Outra barreira interna que nos colocamos para esta ação é o medo de mostrarmos vulnerabilidades que enfraquecerão nossa liderança.
Minha experiência como liderado no mundo corporativo e como “coach” de executivos, é que aqueles que têm mais poder são os que menos receio têm de reconhecer um erro ou uma fraqueza – seu poder é interior e não do crachá de chefe concedido pela firma.
É importante pois praticarmos a escuta ativa e autêntica de feedbacks. Se começarmos a nos defender e justificar, podemos estar certos de que nunca mais receberemos as informações relevantes que os outros têm a nos presentear com suas percepções. Passaremos a escutar apenas aquilo que queremos. Como em um AVC, as artérias de nosso desenvolvimento vão ficar entupidas e poderemos ter um infarto na válvula da carreira.
O estresse está chegando, e agora?
Como explicamos, geralmente, nossos descarriladores entram em ação quando estamos entrando numa situação de pressão, transição, incerteza que nos causa estresse. Segundo a teoria da Inteligência Emocional, nessas condições costumamos reagir instintivamente e menos racionalmente, na tentativa de lidar com a sensação de “perigo” que aquela situação nos causa.
Portanto, se já temos consciência de nossas tendências disfuncionais sob estresse e sabemos que comportamentos devemos evitar, então é importante estarmos muito alertas quando o estresse se esboça em nossa mente para colocarmos em ação nosso “kit antidescarrilamento”.
O Temperamental que sabe o que acende seu pavio curto, pode sair de cena por um tempo e contar de 100 a 1 em alemão (sem conhecer o idioma) para esticar cada vez mais seu gatilho. Ou melhor ainda, usar sua razão e inteligência e cortar o disparador de sua explosão nuclear. O Arrogante que acredita que sempre tem razão e sufoca as contribuições de seus talentos, quando está sob pressão, deve fazer um voto de silêncio de 5 a 15 minutos depois de expor seu plano para ouvir as ideias e preocupações de seu pessoal com o plano apresentado, cuidando durante este prazo para as caras e gestos que nosso corpo pode encontrar como forma de manifestar a mesma postura castradora das palavras. Um sorriso de Monalisa e o olhar atento são a melhor alternativa.
Nossos valores = alicerce de nossa personalidade
Uma imagem muito comum para descrever como e por que agimos de certa maneira é a do iceberg. Na superfície, conseguimos observar o comportamento das pessoas. Abaixo da superfície identificamos seus conhecimentos, habilidades e atitudes, ou seja, os instrumentos de que a pessoa dispõe para agir ou se desempenhar da maneira que o faz. Bem mais ao fundo, na base do iceberg podemos imaginar seus valores e motivos que ajudam a explicar porque elas desenvolvem certas competências e mostram seus comportamentos na superfície das interações sociais cotidianas.
Voltando a nos referir à matéria da Superinteressante, os psicopatas são descritos como pessoas racionais, astutas, sem uma conexão emocional genuína e empática com os outros, que podem mostrar-se extremamente hábeis em captar as motivações dos outros para mentir e manipulá-las para conseguir seus objetivos essencialmente egoístas. Bernard Madoff, cujo esquema de “pirâmide financeira” desabou com a crise financeira de 2008, levando seus clientes a perdas de 65 bilhões de dólares, teria dito na prisão, segundo a revista, “Quero que as minhas vítimas se ferrem. Eu as sustentei por 20 anos e agora vou ter que cumprir 150.” Fica claro que os valores que amparam os comportamentos do Bernie não eram aceitáveis para pessoas honestas e de bom senso.
Em nossa abordagem dos traços de personalidade que podem fazer nossa carreira descer ladeira abaixo, não estamos assemelhando os descarriladores com psicopatia, pois os motivos e valores que estão debaixo dos comportamentos descritos podem não ter nenhuma conotação da desonestidade e frieza do mau caráter, mas ser apenas uma questão de falta de autoconhecimento e de habilidades a ser revisada.
A pessoa de valores éticos e empáticos que busca “fazer aos outros o que gostaria que lhe fizessem”, ao identificar formas que podem estar prejudicando o desempenho de outros, além de sua própria carreira, provavelmente, vai se esforçar para uma correção de rota para que sua carreira não tenha o mesmo destino do “Titanic” quando bateu contra o iceberg.